Professor de história é decapitado por ensinar sobre liberdade de expressão na França. O que está acontecendo na terra da liberdade?

Hoje (21/10) foi o funeral do professor Samuel Paty, decapitado por um jovem muçulmano. Diante do Panthéon, que honra todos os heróis nacionais (tanto cientistas quanto humanistas, políticos, escritores), assisti a cerimônia pelo telão, a qual foi conduzida perto dali, na Sorbonne, aos pés das estátuas de Victor Hugo e de Pasteur. 

‘Um amor que podemos compartilhar’, disse a música escolhida pela família (One, U2) para a entrada do caixão. É significativo que a família claramente não queira que esse ato se transforme em um motivo para culpar toda a comunidade árabe francesa. 

O fato é que a violência ocorre normalmente em relação à comunidade árabe e negra: as mulheres que usam o véu não podem trabalhar nas funções públicas. Retirá-lo seria uma violência contra si mesmas, o véu significa a união delas com deus, é uma forma de respeito a si mesmas. Uma jovem não pode ir para a escola usando o véu, é proibido.  

Essa é apenas uma das muitas violências simbólicas que eles passam, e obviamente haverá consequências violentas de uma forma ou de outra. Infelizmente normalmente isso ocorre contra àqueles que não tem nenhuma influência na manutenção da violência, como o jornal Charlie Hebdo e o professor Samuel Paty.

Em um momento ou outro eles passaram a representar o opressor, como foi o caso do professor que estava ensinando sobre liberdade de expressão a partir das charges do jornal Charlie Hebdo.  

E a liberdade?

A liberdade é um dos pilares da democracia francesa, mas a liberdade é para quem? A Marseillaise fala claramente sobre expulsar os estrangeiros e inclusive diz que o sangue impuro irá regar a solo francês. É irônico tocar uma música dessas para um homem que morreu por ensinar sobre a liberdade, mas não é assim a democracia francesa?

Dou ‘ateliers’ (aulas culturais) para as crianças de uma escola do 19ème, um bairro periférico de Paris e conhecido por ser um bairro dos estrangeiros, especialmente árabes. As crianças, assim que cheguei, me trataram mal por ser estrangeira.

Resolvi, portanto, trabalhar sobre a questão de identidade e liberdade para mostrar que está tudo bem ter uma identidade árabe e francesa. Não há necessidade para se comportar como o opressor, mas sim entender como a diversidade cultural é necessária para que possamos viver em liberdade. A liberdade de ser quem você é também é liberdade de expressão.

Entendo porque esse professor decidiu trabalhar a liberdade de expressão, e acredito que nós dois vemos os mesmos problemas, apesar das crianças terem idades diferentes. No meu caso elas têm sete anos, e já apresentam uma forma fechada de ver o mundo, muito focadas nas próprias culturas, ou então o oposto: mascarando as próprias identidades, dizendo que não falam árabe quando na verdade já admitiram que o sabem, mas tem medo de admitir. Uma menina disse que sua língua não é língua, não é nada. 

São muitos extremismos para uma duas pequenas salas de aula, cada uma com cerca de 15 crianças. Como em qualquer outro país capitalista, a violência contra os mais pobres é cotidiana, porém aqui ela é uma violência etnocêntrica, uma violência contra aquilo que eles não conhecem e temem, que acaba por estourar onde não deveria, como um jornal ou um professor. 

As divisões sociais

Fui com um amigo vender jornais do partido dele, que é um pequeno partido socialista, e ele, jovem espanhol, branco, loiro de olhos azuis, tentou vender o jornal no apartamento de um senhor àrabe que começou a batê-lo entre gritos de ‘extrema esquerda aqui não!’ E tivemos que sair correndo. 

Esse moço, no entanto, quando perguntado se esteve com os coletes amarelos, ou na manifestação contra as mudanças na previdência, disse não, e que não gostaria de participar porque essas são lutas identitárias, são lutas pequenas, que não dizem muito à luta proletária pela revolução. 

Tanto a visão do homem que o bateu quanto dele são perspectivas que apenas dividem a sociedade e não criam pontes para a criação de mudanças reais, apenas fronteiras. São esses os paradoxos que estão destruindo a democracia construída pelo sangue e suor de tantos franceses do passado.

Fonte: Jornalistas Lisvres