Enquanto em grande parte da Índia a ansiedade sobre o coronavírus fundiu-se à já antiga islamofobia, o estado de Kerala, com governo comunista, se tornou referência no combate à covid-19
Por Amit Singh. Investigador no Centro Para Estudos Das Línguas e Sociedade Indianas, doutorando no Centro De Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, autor do livro “THE CONFLICT OF FREEDOM OF EXPRESSION AND RELIGION – A CASE STUDY FROM INDIA”
Tradução por Pedro Ribeiro da Silva
Há uma certa variedade na forma como as nações têm dado resposta ao coronavírus. Na Índia, as respostas têm consistido em pura islamofobia, como testemunha a cunhagem do termo “corona-jihad”. Você não encontrará tal palavra nos dicionários de inglês. Já no Twitter, a palavra corona-jihad constou nos trending topics da Índia logo após relatos de que se empreendia uma busca nacional por mais de 2000 muçulmanos que compareceram ao Tablighi Jamaat (reunião de um grupo missionário muçulmano) em meados de março, no oeste do bairro de Nizamuddin, em Nova Deli. Foi dado início à caça depois da revelação de que cinco pacientes testados positivo para Covid-19 – e que, depois, vieram a falecer – compareceram ao evento de Jamaat. Relatos posteriores sugerem ao menos 100 participantes – alguns de Deli e outros Estados – infectados, e mais de 1000 pessoas ao longo do território dos 20 Estados e da União estão agora sob quarentena.
A onda de ódio no Twitter demonstra como a ansiedade sobre o coronavírus fundiu-se à já antiga islamofobia. Foram publicados vídeos falsos, que afirmavam retratar membros do grupo missionário a cuspir na polícia e em circundantes; outros se tornaram rapidamente virais nas redes sociais, exacerbando uma já perigosa atmosfera para a comunidade muçulmana. “Que o vírus mate 50 crore (500 milhões) de indianos, radicais islâmicos lançaram um corona-jihad contra a Índia”, escreveu um comentador nacionalista hindu. Mesmo após detalhes da congregação emergirem nos media, os hashtags #CoronaJihhad, #NizamuddinIdiots, #Covid-786 (em referência a um número que carrega significado religioso aos muçulmanos), adentraram a lista de trending topics do Twitter. Telejornais ostentavam manchetes tais como “Salvem o país do Corona Jihad”. Waseem Rizvi, presidente conselho central do Shia Waqf de Uttar Pradesh, disse que o Tablighi Jamaat planejou um ataque ‘fidayeen’* contra Índia.
Esses ataques à comunidade muçulmana antecedem a crise do coronavírus, tendo seu início em 2014, na tomada de posse do nacionalista hindu Narendra Modi, que já vinha fazendo uma campanha de ódio contra indianos muçulmanos; para nacionalistas hindus, eles seriam invasores brutais. O medo do coronavírus é apenas mais uma oportunidade para o partido do governo lucrar sobre as misérias das suas minorias muçulmanas, culpando-as pelas infeções e mortes.
O impacto do “corona-jihad” tem sido enorme entre os 200 milhões de muçulmanos indianos. Em Bawana, no distrito de Deli, um grupo de homens foi preso por espancar jovens. Os jovens, alegadamente, teriam escondido suas ligações com Tablighi Jamaat. De acordo com a polícia, pessoas locais teriam assumido que os jovens tinham coronavírus e vieram para espalhar o vírus naquela localidade. No dia 6 de abril, diversas famílias da comunidade muçulmana Gujjar, nos blocos Hajipur e Talwara do distrito de Hoshiarpur, foram alegadamente espancadas por bufões em vilarejos de maioria hindu. “Eles bloquearam a nossa passagem e não nos permitiram que levássemos o rebanho a pastar, dizendo-nos que somos sujos e espalhamos doença”, disse Farman.
Uma muçulmana gravida teve sua entrada ao hospital negada em Varanasi devido ao medo do coronavírus; mais tarde, deu à luz em frente ao mesmo hospital sem nenhuma ajuda médica. Uma testemunha relatou ao autor deste artigo que os suprimentos alimentícios gratuitos, destinados à toda população pobre, estariam sendo distribuídos seletivamente ao eleitorado hindu do BJP, ignorando as comunidades muçulmanas. No distrito de Varanasi, círculo eleitoral do primeiro-ministro Narendra Modi, comunidades muçulmanas vivendo em Lohata, Khojwa e Bajardeeha estão sendo excluídas das distribuições de alimentos pelo governo. Também comunidades dalit em Nut e Mushar enfrentam o mesmo tratamento discriminatório por parte das autoridades indianas.
No Estado meridional de Kerala vemos uma resposta muito distinta e mais humana ao desafio do Covid-19. O Estado de Kerala é governado por uma coligação entre o Partido Comunista Indiano e outros partidos de esquerda. Kerala se tornou um modelo para o mundo em seu enfrentamento ao coronavírus, estabelecendo verdadeiros standards nas questões da testagem, rastreamento e tratamento. Ainda que Kerala tenha sido o primeiro Estado a reportar um caso de coronavírus, já no fim de janeiro, o número de casos na primeira semana de abril desceu 30 porcento em relação à semana anterior. O governo tem conduzido um rigoroso “rastreamento de contatos”, ampla testagem, estabelecido uma longa quarentena, distribuído milhões de alimentos preparados, construído milhares de abrigos para trabalhadores e trabalhadoras migrantes que se encontram sem recursos devido ao fechamento nacional. Também, o governo de Kerala criou um número de WhatsApp destinado à reportagem de casos de violência doméstica no Estado, que têm crescido desde o início da quarentena.
Cidadãos de Kerela aguardam na fila para distribuição de comida. (Divulgação/CPI-M)
O sucesso de Kerala pode provar-se instrutivo ao governo do BJP. Este tem visto a curva subir mesmo após as medidas de distanciamento adotadas. Os desafios enfrentados em Kerala são diversos, mas especialistas têm notado que as medidas proativas, como a detecção precoce e amplas medidas de apoio social, poderiam servir de modelo ao resto do país. Em mais de 30 anos de governança comunista, o Estado investiu fortemente na educação e saúde públicas e universais. Kerala possui a maior taxa de literacia na Índia, e beneficia-se do mais eficiente sistema de saúde pública do país.
Kerala, antes do governo central ter instituído uma dura quarentena que deixou muitos Estados em frangalhos, anunciou um pacote econômico no valor de $2.6 bilhões destinados a combater a pandemia. O governo de Kerala distribuiu alimentos às crianças nas escolas, negociou com provedores para a garantia de um aumento na capacidade da internet e prometeu um avanço de dois meses na distribuição das pensões.
O governo central, controlado pelo BJP, falhou miseravelmente, tanto na saúde quanto na educação. A quarentena nacional já se provou profundamente danosa ao trabalho migrante. Narendra Modi não sentiu necessidade em consultar outros Estados ao estabelecer a quarentena. As perdas econômicas e humanas iminentes devido ao Covid-19 fizeram com que o BJP procurasse um bode expiatório para o qual atribuir seu próprio fracasso – e o Corona Jihad é um deles. Contudo, o governo central ainda poderia tentar reverter o desastre nacional que se avizinha se aprendesse com as lições da Kerala comunista.
Faixa do Partido Comunista da Índia em Kerala (Peter Connolly)
Fonte: Jornalistas Livres