A pauta por equilibrar a economia da memória histórica compõe o rol das lutas por uma sociedade menos violenta, racista, sexista e mais igualitária
No dia 25 de maio, na cidade de Minneapolis, EUA, George Floyd foi detido e asfixiado até a morte pelo policial Derek Chauvin. Floyd era um homem negro. Ele repetiu várias vezes que não conseguia respirar, enquanto Chauvin, o policial, um homem branco, apertava o joelho contra o seu pescoço. As imagens do assassinato foram amplamente disseminadas, na mesma medida em que os protestos se espalharam por diversas cidades dos Estados Unidos e, em seguida, em outros países.
Mayra Marques, Mateus Pereira e Valdei Araujo professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Mariana, MG *
Como se sabe, uma das ações que passou a fazer parte destes protestos foi a derrubada de estátuas que homenageiam personagens de algum modo envolvidos com a história da escravização moderna ou do colonialismo, o que logo suscitou um debate entre a defesa do “patrimônio histórico” e a necessidade de “fazer justiça às memórias” de grupos historicamente oprimidos. A polêmica se dá entre aqueles que alegam a defesa de um certo patrimônio histórico e artístico versus os que demandam por justiça e reparação.
Nos Estados Unidos, uma das tensões com a derrubada ou remoção de estátuas de Cristóvão Colombo envolveu parte da comunidade ítalo-americana, que via e vê na imagem de Colombo um elemento de reforço de sua identidade estadunidense. Segundo um articulista do The New York Times, as estátuas “reconhecem a dívida geral que os colonizadores do Novo Mundo, colonos e imigrantes, têm com o homem que conectou a Europa às Américas, junto (em muitos casos) com o desejo específico dos imigrantes ítalo-americanos de reconhecer e reivindicar o explorador italiano”.[1]
Os personagens históricos, assim como os seres humanos, são multidimensionais, isto é, suas vidas possuem diversos aspectos contraditórios. Assim, como separar o que está sendo homenageado daquilo que deveria ser repudiado, se ambos estão presentes em um mesmo personagem-monumento? Podemos celebrar o Colombo explorador e repudiar o Colombo conquistador? Podemos nos afastar dessa concepção tradicional e homogênea das biografias que ainda organiza as expectativas de boa parte público? Para começar a responder a essas perguntas é preciso analisar em que medida uma visão celebrativa e acrítica do colonialismo que Colombo representa ainda é uma ferida aberta, assim como as concepções racistas e eurocêntricas que fundamentam essa concepção de história.
Os que criticam a revisão dos monumentos públicos possuem origens sociais e políticas distintas; seus enfoques e argumentos são variados. O mesmo pode ser dito dos que defendem a revisão dos monumentos. Este debate está longe de ser uma simples polarização. Alguns críticos questionam o gesto de revisar monumentos por um suposto moralismo anti-histórico que poderia levar à destruição de qualquer ponto de apoio no passado. Segundo esse argumento, a nova iconoclastia (destruição de imagens) desconsidera os contextos históricos, os progressos alcançados na luta por igualdade e relativiza valores morais e políticos que teriam sido decisivos na construção de projetos nacionais bem-sucedidos.
Mais recentemente alguns críticos invocaram o tema da liberdade de expressão em torno de uma suposta cultura do cancelamento, da qual a destruição das estátuas seria apenas mais uma dimensão. Nesse grupo de críticos pode-se encontrar quase todas os matizes da direita política contemporânea, mas, também, setores da esquerda, como muitos dos que assinaram a carta publicada na Revista Harpers em 7 de julho deste ano em um manifesto contra uma alegada cultura do cancelamento que estaria colocando em risco a liberdade de expressão. As posições, naturalmente, vão oscilar desde uma recusa total a qualquer esforço de revisão – como defendido por Donald Trump no caso dos militares confederados que nomeiam bases militares estadunidenses – até críticos moderados que admitem a legitimidade de algumas demandas e que questionam apenas os métodos de algumas dessas ações.
Os que defendem a revisão dos monumentos são muitas vezes enquadrados no rótulo de uma nova esquerda identitária ligada aos movimentos negros, de mulheres e LGBTQIA+. Não raro esses grupos também apresentam demandas por novas histórias e novos monumentos. Por outro lado, setores da direita também não estão alheios ao trabalho de revisão de personagens e eventos históricos em perspectiva iconoclasta, mesmo que frequentemente lançando mão de procedimentos negacionistas e de falsificação, ou seja, da distorção programática de nosso conhecimento sobre a história. Estes grupos de direita promovem a narrativa de uma guerra cultural para salvar uma fantasiosa civilização “cristã-ocidental” e os valores da pátria e da família tradicional, ignorando qualquer esforço de acolhimento crítico daqueles que pensam e vivem de modo diferente.
No dia de 13 de maio, que no Brasil se comemora a abolição da escravatura, a “derrubada simbólica” da figura de Zumbi pela Fundação Palmares foi acompanhada do reforço de personagens supostamente mais afinados com a base do bolsonarismo, como a Princesa Isabel e Joaquim Nabuco; mas também do intelectual negro Luiz Gama, celebrado como patrono da abolição. A operação reforçava a oposição entre uma narrativa de resistência violenta dos negros e a via por dentro do sistema através de reformas. De certo modo, Luiz Gama, filho de pai branco e mãe negra, cuja biografia destaca sua capacidade de prosperar dentro da ordem, estaria mais adequado à mitologia conservadora promovida pelo bolsonarismo.
Pelourinho
Na Praça Minas Gerais, em Mariana, cidade que abriga nosso campus da UFOP, há um dos poucos pelourinhos em espaços públicos ainda existentes no Brasil. Esses marcos eram usados no período colonial para identificar o poder local quando da criação de vilas, simbolizava o poder de administrar a justiça, o que na época poderia envolver a exposição e o açoite em público. Muito frequentemente as pessoas punidas nesses espaços eram seres humanos escravizados. O pelourinho de Mariana havia sido derrubado em 1871, mesmo ano em que entrou em vigor a Lei do Ventre Livre, mas foi reconstruído e reinstalado em 1981, em novo local, a mando do então prefeito Jadir Macedo.
Muitos turistas que visitam a Praça Minas Gerais em Mariana se divertem tirando fotos nas quais simulam estar algemados, e alguns brincam que estão sendo chicoteados. Não há, no monumento, uma explicação clara sobre a sua história, apenas uma placa dizendo que o prefeito havia “restituído” o pelourinho à “memória nacional”. Alguns metros ao lado há outra sinalização em que se lê: “Símbolo do poder municipal, inicialmente composto por simples coluna de madeira com argolão ao pé, no qual eram amarrados criminosos e cativos expostos ao castigo público” e mais alguns detalhes técnicos. É interessante notar que o “poder municipal” não precisaria necessariamente continuar a ser simbolizado pelo pelourinho para as gerações futuras, já que o prédio da Câmara Municipal, erguido também no século XVIII, se encontra preservado e ativo nessa mesma praça.
Caso a placa de identificação do pelourinho contivesse mais informações sobre a violência contra os presos e escravizados, os turistas continuariam a tirar fotos agrilhoados? Encarar este local como um lugar onde pessoas foram torturadas no passado não tem nenhuma relação com os inúmeros casos de violência que presenciamos hoje em dia? Como não lembrar de vários casos em que pessoas alegando fazer justiça com as próprias mãos amarram suspeitos de roubo (geralmente pobres e negros) em postes? O pelourinho como monumento não não seria também um símbolo dessa violência policial e social de nosso presente? Não seria ele a reafirmação de frases populares como “bandido bom é bandido morto”, que autorizam a prática do justiçamento contra pessoas pretas e pobres? O tipo de frase inúmeras vezes repetida pelo presidente Bolsonaro e que tem nas condições genocidas das prisões e cadeias brasileiras sua materialização enquanto política pública.
Esse seria um exemplo da plurissignificação aderida aos monumentos históricos, pois, nesse caso, a elite local celebra, com a reinauguração do Pelourinho, uma suposta autonomia que reforçou a imagem da cidade como a origem administrativa do poder em Minas, enquanto também representa um passado-presente violento e racista que é invisibilizado ou ignorado. O reerguimento do pelourinho no final da Ditadura Militar está relacionado à onda ufanista de valorização do patrimônio colonial, mas também com as ansiedades que a expansão da mineração trazia. Segundo o mesmo prefeito, em declaração para o Jornal do Brasil em 1981, a cidade corria o risco de ter um “futuro vazio”. O pelourinho representava a atualização de uma forma de poder baseado na hierarquia e na violência racial que, de algum modo, pacificava a consciência das elites locais em um momento de rápida transformação. Na época, o turismo histórico baseado em uma concepção celebrativa do passado colonial também começava a ser alvo de políticas públicas locais.
Quase quatro décadas depois de restauração do pelourinho o futuro de Mariana não foi vazio. De algum modo as elites locais conseguiram repetir o passado colonial de desigualdades e hierarquias. A município saltou de 14 para 60 mil habitantes, as periferias cresceram com pouca ou nenhuma infraestrutura, a mineração nos legou o crime da Samarco e somos hoje o município com um dos piores indicadores socioeconômicos de Minas Gerais. O turismo valorizou as áreas centrais da cidade beneficiando os herdeiros do casario colonial e a especulação imobiliária.
Seria uma saída buscar meios de separar a celebração das elites locais da memória da escravidão? Uma saída difícil, é fato, já que a violência foi perpetrada por este mesmo poder que a celebra. Ao mesmo tempo, nas disputas por prestígio e investimentos, a elite política constantemente recorre à história da cidade como a primeira de Minas, gesto que atinge seu ponto alto no dia 16 de julho quando, por artigo na Constituição estadual, a cidade volta ser a capital do Estado. Geralmente a data é comemorada com a presença do governador, o que reforça seu papel nos mitos constitutivos da história mineira.
Para o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot, em Silenciando o Passado, “trivializar a escravidão – e o sofrimento que ela causou – é algo inerente ao presente, que envolve tanto o racismo como as representações da escravidão”.[2] É importante ressaltar mais um aspecto da presença do pelourinho em Mariana: a cidade é sede, desde os anos de 1980, de um curso de História vinculado à Universidade Federal de Ouro Preto.
Como professores isso significa que não estamos ali só de passagem, vivemos a cidade e suas contradições. Como em muitas outras salas de aulas no Brasil e no mundo, concordamos com as palavras dos colegas Francisco Carballo, David Martin e Sanjay Seth que recentemente escreveram sobres os protestos antirracistas em Londres: “Os manifestantes, muitos deles jovens, porém já amadurecidos, estão fazendo a ligação entre a história do colonialismo, a história da escravidão e o racismo estrutural que é o seu legado. Eles estão fazendo isso apesar de sua educação formal, e não porque esta lhes deu essa oportunidade. A rua é a sala de aula porque as salas de aula falharam”.[3]
Seria ingênuo, e mesmo violento, imaginar que comunidades humanas possam viver sem suas narrativas de orientação e presença no tempo. Para que sejam eficazes, no entanto, é preciso que essas narrativas sejam representativas e inclusivas. O que observamos em situações como a do pelourinho em Mariana é uma perda de representatividade de narrativas tradicionais convivendo com uma crise mais profunda da forma como vivemos a nossa história comum. Portanto, não se trata apenas de refundar e atualizar narrativas históricas, mas de questionar seus efeitos e duvidar das condições de que isso aconteça em um tempo atualista que nos pressiona a viver uma história pobre.
A derrubada de estátuas pode simbolizar um deslocamento ou uma atualização da relação com o tempo histórico, levando a inevitáveis redimensionamentos das disputas por orientação e performances. Exemplos conhecidos são as estátua do Czar Alexandre III, retirada pelos revolucionários russos em 1917, os bustos de Lenin e Stalin, com o fim da URSS, e, mais recentemente, a estátua de Saddam Hussein, em Bagdá, em 2003. Em Budapeste, encontramos um jeito próprio de lidar com o passado: as estátuas retiradas de locais antes públicos agora se encontram no Memento Park, um museu a céu aberto, bem longe do centro da cidade.
O fato é que perpetuar e destruir registros são gestos siameses e constitutivos de nossa condição humana, que podem acontecer de modo programático ou espontâneo. No caso atual, a retirada, ressignificação ou atualização das estátuas simbolizaria não a inauguração de um novo regime político, mas a tentativa de dar visibilidade àqueles sujeitos que a história teria invisibilizado ou registrado a partir de hierarquias e distorções. A luta por equilibrar a economia da memória histórica compõe o rol das lutas por uma sociedade menos violenta, racista e sexista e mais igualitária. Essas novas disputas, em torno de personagens muitas vezes desconhecidos, indica também que a presença do passado é mais complexa do que a “consciência historiográfica” gostaria de supor. Ou seja, longe de um passado morto e domesticado por um historiador terapeuta, o que vemos nessas disputas é uma sociedade plural e muito atenta à forte presença da história, capaz de identificar e disputar passados-presentes sensíveis e apontar para um necessário esforço de atualização que abra outros futuros.
Se considerarmos as cidades ou os países como grandes museus, nos quais se integram as estátuas, os casarões históricos e os monumentos que os compõem, assim como as peças expostas, precisamos pensar sobre as decisões em relação às seleções feitas pela curadoria que, em última instância, vai decidir sobre a relevância desse ou daquele objeto presente nestes espaços. Ou seja, estamos diante de figuras fundamentais nessas escolhas: os/as curadoras, que, no caso das cidades, geralmente são as autoridades políticas, mas que também podem ser pessoas comuns que reivindicam a inserção ou a retirada de um monumento.
Nessa direção, ao analisar o caso americano, Trouillot afirma que: “O fato de que a escravidão estadunidense tenha acabado oficialmente, mas continue sob muitas formas mais sofisticadas – em especial, sob a forma de racismo institucionalizado e de degradação cultural da negritude –, torna a sua representação particularmente incômoda nos Estados Unidos. A escravidão, aqui, é um fantasma, isto é, simultaneamente uma figura do passado e uma presença viva; e o problema da representação histórica é como representar este fantasma, algo que é, mas não é”.
Derrubar estátuas não significa que o passado a elas relativo será apagado, mas que há um desejo de mudança em direção a um futuro em que aqueles que construíram suas vidas baseadas na escravização de outras pessoas não se tornem referência. Portanto, a questão que se coloca é: como lidar com a obsolescência de monumentos? Haveria lugar na monumentalização pública para objetos obsoletos? Haveria uma força de atualização, em sentido próprio, que pode ser despertado pelo que nosso presente considera obsoleto?
As estátuas não deveriam ser celebradas. Qualquer pessoa familiarizada com a imperfeição das coisas humanas saberá que por trás de cada personagem ou evento escondem-se falhas, insuficiências, erros, mentiras e mesmo crimes. A ambivalência é constitutiva da vida humana e se enquadra mal às exigências rigorosas da escala moral e ética. Assim, o mais prudente é entendermos que a monumentalização de personagens e eventos históricos deveria ser um motivo para comemoração no sentido estrito da palavra, ou seja, um convite à rememoração coletiva, à reavaliação crítica dos sentidos e consequências dessas pessoas e eventos para o nosso tempo.
(*) Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.
[1] DOUTHAT, Ross. The Ghost of Woodrow Wilson. The New York Times, Nova Iorque, 30 de junho de 2020. Opinion. Disponível em <https://www.nytimes.com/2020/06/30/opinion/woodrow-wilson-princeton.html> Acesso em 26 ago.
[2] TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o Passado: Poder e a Produção da História. Curitiba: Huya, 2016.
[3] CARBALLO, Francisco; MARTIN, David; SETH, Sanjay. A sala de aula e a rua. HH Magazine, 08 de julho de 2020. Ensaios. Disponível em <https://hhmagazine.com.br/a-sala-de-aula-e-a-rua/> Acesso em 01 set. 2020.