Antes de entrar no caso brasileiro do fundos de pensão, precisamos falar um pouco de história.
Modelos de proteção social para idosos existem há muito tempo. A história nos mostra que na Roma antiga já existia preocupação em separar uma parte dos soldos dos soldados e a garantia de um “pedaço de terra” para que pudessem se manter na velhice. Na Inglaterra, no inicio do século 17 foi criada a “poor relief act” (lei de alivio da pobreza, em tradução livre). Mas foi com Otto Von Bismarck, na antiga Prússia, hoje Alemanha, que o sistema ganhou relevância e normas mais definidas. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, editada em 1948, trouxe em seu artigo 25 o princípio da proteção na velhice e em casos de perda dos meios de subsistência.
No Brasil o registro mais antigo conhecido é do Montepio de Beneficência dos órfãos e viúvas dos oficiais da Marinha, de 1725. Ou seja, a humanidade se preocupa com a manutenção das pessoas quando da diminuição da capacidade laboral há um bom tempo e foi nessa esteira que foram criados os fundos de pensão.
O sistema previdenciário brasileiro está constituído em “pilares” e a previdência complementar fechada é uma parte importante desse modelo, constituída hoje por cerca de 300 entidades, chamadas de fundos de pensão ou tecnicamente de entidades fechadas de previdência complementar (EFPC).
Essas entidades são sustentadas pelos participantes e patrocinadores que contribuem mensalmente, de acordo com um plano de custeio pré-definido, para compor uma reserva que irá se transformar num benefício no futuro. Para se chegar ao valor do custeio são necessários cálculos com vários fatores e variáveis, dentre eles: valor e tipo do complemento, idade média que a população assistida chegará, taxa de desconto (rentabilidade dos ativos), dentre outros. Anualmente os fundos de pensão precisam apresentar um balanço aos reguladores e ao seu corpo social e demonstrar qual o nível de solvência, ou seja, se os recursos que ele possui serão suficientes para honrar os compromissos assumidos ao não. Esse processo ocorre em todos os países onde existem fundos de pensão e as premissas são muito parecidas. Mudanças nessas premissas causam alterações significativas nos cálculos, levando a déficits ou superávits, a depender da variável mutante.
O aumento da longevidade tem trazido desafios diversos aos gestores, pois será necessário pagar benefícios por mais tempo, portanto, a reserva precisará ser maior e para isso ou se aumenta a contribuição de custeio ou a poupança previdenciária terá que render mais para que seja mantido o nível de pagamentos, o que leva a investimentos com maior risco. Os investimentos de risco mais conhecidos são as ações em bolsas de valores, chamados pelos investidores de “renda variável”. Desde a crise de 2008 os ativos de renda variável, em especial, vem sofrendo bastante, pois a economia mundial tem enfrentado altos e baixos constantemente.
Nos anos de 2013 e 2014 as economias americana e europeia sofreram fortes quedas e isso abalou os mercados de capitais. Os anos de 2015 e 2016 foram especialmente dramáticos para fundos de pensão pelo mundo afora. Em 2015, o índice do solvência dos fundos de pensão na Europa estava em cerca de 94% e em 2016 foi de 95% segundo a EIOPA (European Insurance and Occupational Pensions Authority). Nos Estados Unidos, fundos como a CalPERS e CalTRS apresentaram índices de solvência na faixa de 70% e em 2016 o índice médio dos planos BD americanos foi de 81,2%, mas o que isso significa?
Significa que nesses anos o déficit foi alto, ou seja, naquele momento os fundos de pensão na Europa e Estados Unidos não tinham recursos suficientes para honrar seus compromissos até o final, faltaria muito dinheiro, algo como US$ 240 bilhões (o equivalente a R$ 1 trilhão).
O maior fundo de pensão do mundo, o GPIF (Government Pension Investment Fund), do Japão, apresentou sozinho, em 2015, um resultado deficitário de cerca de US$ 200 bilhões.
Em 2015, os fundos de pensão no Brasil também sofreram as consequências dessa crise mundial, agravada pela crise política que culminou com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016. Pelas terras de Pindorama o índice de solvência dos planos BD chegou a 91,5%, traduzindo, para honrar seus compromissos até que o último beneficiário estivesse vivo faltariam cerca de R$ 80 bilhões. Em 2016 esse número regrediu, mas ainda ficou deficitário em cerca de R$ 60 bilhões.
Mas como reagiram os participantes, gestores, reguladores e legisladores na Europa, Estados Unidos, Japão e Brasil? Houve uma ação organizada para entender as consequências e mitigar possíveis riscos, investigação por possíveis crimes, etc.?
Bem, a resposta foi muito diferente por lá e por aqui.
Especialmente na Europa a preocupação maior foi com o efeito da longevidade na sustentabilidade dos pagamentos e buscou-se formas de amenizar essa consequência com possibilidades de securitização dos passivos. Quanto à rentabilidade dos ativos era sabido que se tratava de uma situação conjuntural e que a recuperação se daria em alguns anos.
Nos Estados Unidos houve debate sobre a melhor forma de alocação de recursos e se a aplicação nos títulos do tesouro era bom ou não, visto que estavam tendendo a zero. Quanto à renda variável era necessário aguardar a recuperação da economia. No Japão apenas se avaliou as alocações e foram mantidas as políticas de investimento, pois não se alterou apetite a risco.
No Brasil foi muito diferente, com a atuação de pessoas e grupos com interesses os mais diversos, houve uma verdadeira loucura, com acusações aos gestores e muita desinformação aos participantes.
Grupos políticos alardearam que havia um “rombo” e que era preciso investigar. Uma CPI foi criada com exposição midiática absurda. Os tabloides e as emissoras de TV anunciavam diariamente o andamento das “investigações” e os “indícios” de má gestão e desvios. O Ministério Público pedia abertura de inquéritos baseando-se em “supostos indícios” de má gestão ou falta de diligência, mas antes avisava os jornais e as TVs para que cobrissem os depoimentos e conhecessem o teor das “denúncias”. Foi criada uma força tarefa que investigou investimentos e só notificou parte dos investidores, os gestores dos fundos de pensão. Os banqueiros e “profissionais de mercado” que investiram no mesmo ativo não foram citados. Uma parcialidade assustadora.
Ao final dessa jornada, a CPI elaborou um relatório de mais de 800 páginas com elucubrações diversas, foram abertos inúmeros processos que concluíram que os gestores dos fundos não agiram com “diligência”, pois não anteviram a crise. E o fecho de ouro: apresentaram no Congresso Nacional uma proposta para “profissionalizar” a gestão dos fundos de pensão para o setor privado, escolhendo no mercado esses profissionais.
Dois anos depois o déficit, ou “rombo” como classificaram os terceiros interessados, havia diminuído em mais de 60% com a melhora da economia nacional, apesar dos tropeços diversos.
Conclusão: no mundo todo os déficits foram tratados como algo que ocorre em investimentos de longo prazo e quando a política de investimentos é seguida, apenas se deve fazer ajustes sazonais e aguardar a melhora da economia e a vida que segue.
No Brasil, um grupo de interesses econômicos transformou o déficit em “rombo”e criminalizou os gestores dos fundos de pensão. Com a proposta de transferir a gestão do patrimônio de cerca de R$1 trilhão para o mercado financeiro, fez crer que resolveria o problema e que alijar os trabalhadores de participar do gerenciamento dos seus recursos era necessário.
Essa luta ainda está sendo travada e deve durar muito. Notícias esparsas surgem de vez em quando, sempre reforçando as acusações e quando saem as sentenças inocentado os gestores há uma omissão escandalosa. Aos participantes é necessário a eterna vigilância, pois há muitos interesses em abocanhar a poupança previdenciária dos trabalhadores, a exemplo de alguns países como o Chile. É fundamental que os trabalhadores conheçam as consequências das decisões tomadas na gestão de seu patrimônio, especialmente quando a promessa é muito boa.
Marcel Barros é ex-diretor eleito de Seguridade da Previ, vice-presidente da Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão e dos Beneficiários de Planos de Saúde de Autogestão (Anapar) e representante dos participantes de fundos de pensão no Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC)
Fonte: RBA