Cálculo das verbas rescisórias e de multas por inobservância da legislação laboral soma em torno de R$ 217 mil
Mais uma operação conjunta realizada neste mês de agosto, envolvendo Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS), Fiscalização do Trabalho e Polícia Militar Ambiental, culminou no resgate de nove trabalhadores paraguaios que se encontravam em situação análoga à escravidão em uma propriedade rural localizada no município de Aquidauana. A diligência ocorreu na última quarta-feira (21) e no dia seguinte (22) foram ajustados os acertos que totalizaram quase R$ 767 mil. Essa quantia corresponde ao pagamento de dano moral individual e coletivo, verbas rescisórias, multas aplicadas em autos de infração e demais direitos trabalhistas devidos às vítimas.
Segundo apurado nas investigações, os trabalhadores atuavam na cadeia produtiva do carvão vegetal. Porém, no local predominava a prática conhecida por truck system (servidão por dívida), que consiste na limitação ao direito fundamental de ir e vir ou de encerrar a prestação do trabalho, em razão de endividamento ilegal atribuído pelo empregador/preposto ou da indução perante terceiros. Neste caso, as dívidas das vítimas se concentravam no comércio exclusivo de alimentos e produtos de higiene pessoal, feito por um armazém gerenciado pela esposa do proprietário da carvoaria, em valores supervalorizados quando comparados àqueles praticados por outros estabelecimentos. O pão de forma, por exemplo, que era vendido por R$ 15 no armazém, custava R$ 6,59 em um supermercado no município de Aquidauana.
“Esses trabalhadores foram traficados do Paraguai já com um débito referente ao valor do transporte até a carvoaria. Somado a isso, todo o consumo de mercadorias estava atrelado ao armazém, pois essas vítimas ficavam alojadas na propriedade rural e impedidas de se deslocarem para outro local onde pudessem adquirir suprimentos essenciais à sua subsistência”, observou o procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes, que atuou no caso. Ele acrescentou que não havia controle no comércio desses produtos, visto que todas as anotações de possíveis vendas eram feitas pela administradora do armazém em um caderno, sem a entrega de recibos para o consumidor. Esses valores eram descontados dos trabalhadores quando se fazia o acerto de salários.
Durante a audiência administrativa realizada nas dependências da Vara do Trabalho de Aquidauana, os trabalhadores resgatados foram orientados e ouvidos individualmente pelo procurador Paulo Moraes e por auditores-fiscais do Trabalho, ocasião em que puderam discutir com os representantes legais da propriedade rural os valores a serem auferidos. Na ocasião, Moraes esclareceu que, após a devida regularização do contexto, os trabalhadores poderão ser registrados e trabalhar normalmente, desde que observados alguns cuidados, especialmente em relação à garantia de maior transparência no comércio de produtos pelo armazém. “É imperioso que os valores cobrados sejam exatamente os mesmos pagos pelo empregador junto ao estabelecimento onde foram adquiridos os bens ofertados aos trabalhadores, mediante a apresentação de nota”, ponderou o procurador.
Retorno ao labor por dívida
Em depoimento prestado durante a diligência, I.A.E.B., uma das vítimas que trabalhava no local há quatro meses, revelou que o pagamento de salário é realizado apenas quando os trabalhadores retornam à cidade de origem. Sem registro em carteira de trabalho nem portando outro documento brasileiro, ele contou não ter conhecimento sobre quanto custa os produtos que adquire no armazém, “pois não há tabela de preços nem fica com cópia do que pega para consumo”. O estrangeiro disse também que já saiu devendo e foi obrigado a retornar para o trabalho como forma de quitar sua dívida. “Tem situação de trabalhador que não consegue voltar porque está devendo”, concluiu referindo-se à cidade de origem, no Paraguai.
Pagamentos e obrigações
Tendo em vista a situação de trabalho análogo à escravidão identificada na carvoaria, o dano moral individual foi classificado como gravíssimo. O procurador do Trabalho esclareceu que a quantia devida aos trabalhadores foi definida com base na gradação da legislação vigente havendo, neste caso, a concordância das vítimas quanto ao recebimento do montante equivalente a 20 vezes o valor do último salário para o exercício da atividade na fazenda. Sendo assim, sete trabalhadores resgatados irão receber R$ 60 mil e outros dois trabalhadores serão retribuídos com o total de R$ 40 mil. As indenizações pactuadas serão executadas em doze parcelas, vencendo a primeira no dia 22 de outubro. Juntos, os trabalhadores resgatados também receberam um pouco mais de R$ 51 mil, a título de quitação de verbas rescisórias. O proprietário da carvoaria ainda deverá ressarcir a sociedade no valor de R$ 50 mil, sendo o compromisso vencível no dia 22/11/2025.
A audiência administrativa também culminou na assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), por meio do qual o empregador se comprometeu a cumprir diversas obrigações de fazer e de não-fazer, prevendo a adoção imediata de medidas como: abster-se de admitir ou manter empregado sem o respectivo registro em livro, ficha ou sistema eletrônico competente; abster-se de manter empregado laborando sob condições contrárias às disposições de proteção do trabalho, quer seja submetido a regime de trabalho forçado, quer seja reduzido à condição análoga à de escravo; fornecer, gratuitamente, aos trabalhadores rurais Equipamentos de Proteção Individual; oferecer água potável e fresca nos locais de trabalho, em quantidade suficiente e em condições higiênicas; providenciar a documentação rescisória dos empregados resgatados; recolher o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) incidente sobre os valores retroativos, em razão do registro tardio dos trabalhadores; recolher a multa de 40% sobre o saldo do FGTS apurado no item anterior, entre outras ações.
Além das indenizações por dano moral e da assinatura dos acordos extrajudiciais, a fiscalização do Trabalho emitiu autos de infração com a aplicação de mais de R$ 165 mil em multas, por inobservância da legislação laboral pelo empregador.
A força-tarefa de resgate desses trabalhadores estrangeiros contou com a participação dos auditores-fiscais André Otavio Pastro Kempf e Antonio Maria Parron, do agente de Segurança Institucional do MPT-MS Sergio Massao Hisano, dos policiais militares Ademar Silva de Oliveira, Antônio Pereira da Silva, Eder Romero, Itamar Alves Martins, Luiz Carlos da Silva e do técnico em colonização Edson Moreira de Oliveira.
Escravidão contemporânea
Em 2022, 116 trabalhadores foram resgatados de condições análogas às de escravo em propriedades rurais de Mato Grosso do Sul. Já no ano passado, houve a retirada de 87 trabalhadores dessas situações degradantes, também na zona rural do estado. Em 2024, as operações conjuntas resultaram no resgate de 71 trabalhadores.
Não é apenas a privação de liberdade que torna o trabalho análogo ao de escravo, mas a ausência de dignidade humana. As vítimas desse crime e irregularidade trabalhista podem ser flagradas sob parte dos quatro elementos que caracterizam o contexto: condições degradantes de trabalho, compreendidas pela violação de direitos fundamentais e que coloquem em risco a saúde e a segurança do trabalhador; jornada exaustiva, em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de labor que pode acarretar danos à sua integridade; trabalho forçado, em que a pessoa pode ser mantida no serviço por meio de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas, além de servidão por dívida, quando o trabalhador fica mantido ao labor por causa de um débito ilegal. Os elementos podem vir juntos ou isoladamente.
Todo cidadão que presenciar cenários que possam configurar trabalho análogo ao de escravo pode denunciar ao MPT. Para isso, basta acessar o link www.prt24.mpt.mp.br/servicos/denuncias. As comunicações ainda podem ser feitas por meio do aplicativo MPT Pardal.
- Do MPT/MS