Não sei se o vídeo da fatídica reunião comprova as acusações de Sérgio Moro. Fato mesmo é que é o tratado de definição da doutrina bolsonarista
ARTIGO
Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia (UFBA)
22 de maio de 2020. Por ordem de Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, partes do vídeo da reunião de governo realizada em 22 de abril foram divulgados. Todos assistimos. Sérgio Moro afirma que há no vídeo provas de que o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir politicamente na Polícia Federal.
Quero aqui examinar o vídeo, buscando entender como os valores fundamentais do bolsonarismo atravessam as manifestações de Bolsonaro e de seus ministros. O vídeo é o documento mais completo que temos para tentar entender a doutrina bolsonarista.
Fica evidente que o bolsonarismo se considera um projeto político revolucionário. Não é cortina de fumaça. Não é simples retórica usada para esconder os interesses do capitalismo internacional. É genuíno. É sincero. Bolsonaro e seus seguidores estão mesmo convencidos de que estão promovendo uma revolução. O revolucionário é o tipo social mais perigoso que existe. Na ética revolucionária vale tudo para acelerar o processo histórico rumo à utopia. O revolucionário não tem limites.
Qual é a utopia bolsonarista?
Diferente das utopias modernas, a utopia bolsonarista não aponta para um futuro inédito, para o novo a ser construído. Trata-se de uma utopia reacionária, com o objetivo de reconstruir o mundo perfeito que já teria existido no passado. Na temporalidade bolsonarista, o passado é a matriz da utopia. O futuro é a regeneração. O presente é a decadência a ser superada pela ação revolucionária.
Seria equivocado dizer que a utopia bolsonarista é conservadora. Conservadores, hoje, são aqueles que tentam salvar as instituições democráticas da revolução bolsonarista.
Qual é o passado que serve como objeto de desejo para a utopia reacionária bolsonarista?
Não é a ditadura militar instituída no Brasil em 1964. E aqui temos aspecto muito importante para a compreensão do bolsonarismo. O deputado Jair Bolsonaro ficou quase 30 anos no parlamento elogiando a ditadura. O objeto da nostalgia do deputado era a ditadura militar. A nostalgia do presidente Bolsonaro é outra. Em algum momento aconteceu o encontro do deputado Bolsonaro com a crítica da modernidade desenvolvida por Olavo de Carvalho ao longo da década de 1990. Esse encontro, que ainda precisamos descobrir como aconteceu, quando aconteceu, é o berço do bolsonarismo como projeto revolucionário.
O presidente Jair Bolsonaro idealiza um mundo pré-moderno, anterior à invenção do Estado, onde os patriarcas pegam em armas, se organizam em milícias para proteger sua propriedade e sua família, para dominar sua propriedade e sua família. Esse é o núcleo duro do projeto bolsonarista, manifestado não apenas nas falas do presidente na tal reunião, mas nas diversas tentativas do governo em flexibilizar as regras de controle do comércio de armas de fogo, quase sempre à revelia das Forças Armadas, que legalmente têm autoridade técnica sobre a matéria.
Na doutrina bolsonarista, o cidadão de bem, homem, proprietário, deve ser livre para matar, se entender que é necessário para defender seus interesses. O regime de força que o bolsonarismo tenta implantar no Brasil não tem o objetivo de reeditar a ditadura militar. O objetivo é transformar o país num continente feudal, onde cada lote de terra é guardado pelo patriarca armado, senhor da vida e da morte de todos aqueles que vivem sob sua tutela/proteção. Essa é a liberdade que Weintraub e Bolsonaro querem defender, dizem estar dispostos a tudo para defender.
Na utopia bolsonarista, os filhos devem ser criados à imagem e semelhança dos pais, sem nenhuma interferência externa à casa. A educação pública seria, então, ato de tirania, a tentativa do Estado em corromper os filhos do patriarca. Por isso, tudo que Weintraub fez desde que assumiu o Ministério da Educação foi tentar desmoralizar a educação pública. Desmoralizar os professores, as universidades, o ENEM. Não é incompetência administrativa. É projeto. É ideologia. É a doutrina bolsonarista.
E Paulo Guedes? O chicago boy tão incensado pela imprensa liberal, definido como a reserva técnica dentro do governo do capitão aloprado. Lembro de Eliana Catanhede dizendo que Bolsonaro havia feito um “golaço” ao convidar Guedes para comandar a fazenda. Ah, essa “direita democrática” brasileira. Ou são cínicos ou são burros. Talvez as duas coisas.
Guedes é tão militante como Weintraub. Sua adesão ao bolsonarismo também é ideológica. A utopia reacionária bolsonarista cai como uma luva no neoliberalismo religioso de Paulo Guedes. “Nunca briguei com Guedes”, disse Bolsonaro. Por que brigaria? Eles foram feitos um para o outro.
Guedes não é um infiltrado do mercado que tenta disciplinar Bolsonaro. Guedes não é a concessão feita por Bolsonaro para agradar o mercado e se sustentar no governo. Guedes é escolha ideológica, é prova de que o capitalismo especulativo não tem nenhum compromisso com a civilização.
“Tem que privatizar a porra toda!”, disse Guedes. Somente na utopia bolsonarista, o fanatismo de Guedes é viável. Somente em um mundo dominado pela casa, o Estado pode ser mínimo, quase inexistente, como professa a religião de Paulo Guedes. O Estado é mínimo porque a casa é grande. Definitivamente, Paulo Guedes é militante bolsonarista.
O bolsonarismo também evoca certo conceito de democracia e de representação política, mas numa chave muito diferente daquela que caracteriza o experimento democrático liberal-burguês. Na democracia liberal, o Estado é dividido em três poderes, que estabelecem entre si relação de controle recíproco, naquilo que costuma ser chamado de “sistema de freios e contrapesos”. Na democracia liberal, a participação política do cidadão é indireta. Periodicamente, o sujeito vai às urnas escolher seus representantes, para quem delega sua soberania.
O bolsonarismo altera o conceito de democracia e redimensiona a ideia de representação política, se aproximando muito da lógica fascista. Para o bolsonarismo, toda e qualquer mediação é corrupta em si. Nesse sentido, Legislativo e Judiciário nada mais fariam do que se locupletar do dinheiro público e criar dificuldades para o poder Executivo, único legítimo, o único verdadeiramente capaz de representar o cidadão.
O bolsonarismo não tolera negociar com os outros poderes, não aceita nenhum tipo de interferência. A representação política bolsonarista se dá pela projeção direta, sem mediação, de soberania no chefe, o único considerado verdadeiramente honesto. Existiria entre o chefe e o cidadão um vínculo afetivo, de confiança, de cumplicidade. O chefe representaria o cidadão porque também é homem honrado, pai de família em luta contra a corrupção sistêmica. O fascista é sempre um homem comum.
A representação liberal é pragmática, é movida pelo interesse do cidadão em delegar sua responsabilidade cívica a outro, garantindo, assim, o ócio necessário para se dedicar a seus assuntos privados. A democracia liberal é desmobilizadora. Já a representação fascista é afetiva, emocional, depende de constante agitação. O fascismo é mobilizador.
A democracia bolsonarista significa uma sociedade organizada em clãs, cada qual protegido por um patriarca armado, homem de bem, representado diretamente pelo chefe maior, entendido como um deles.
O bolsonarismo opera com conceitos que são constitutivos da tradição política ocidental, como liberdade, democracia e representação política. Conceitos que são elásticos o suficiente para permitirem a leitura fascista. O fascismo não é fruto estranho no terreno da tradição política ocidental. É possibilidade política aberta por essa tradição. De alguma forma, o fascismo é parte daquilo que somos, que todos nós somos. Por isso, ora ou outra o ovo da serpente dá cria. Por isso, é necessário estar sempre vigilante. Quando menos esperamos, o fascismo brota do chão, sem aviso prévio. Simplesmente chega, de mansinho, enquanto tudo estava normal, enquanto as instituições “estão funcionando”. Funcionam até o exato momento em que não funcionam mais.
Não sei se o vídeo da fatídica reunião comprova as acusações de Sérgio Moro. O processo legal, que Moro nunca respeitou quando era juiz, dirá. Fato mesmo é que o vídeo é o tratado de definição da doutrina bolsonarista. É o texto que Olavo de Carvalho não escreveu.