Velório de Neri, indígena morto em MS. Foto: Henrique Arakaki

Neste dia, para os povos indígenas, o termo “terra” extrapola os sentidos do real e vai, mais uma vez, ao campo simbólico

Dos possíveis efeitos de sentido que atravessaram o acontecimento do velório de Neri da Silva — o indígena de 23 que foi morto pela Polícia Militar em Mato Grosso do Sul —, é possível destacar a presença significativa da terra durante a despedida, realizada na tarde desta sexta-feira (20). Neste dia, para os povos indígenas, o termo “terra” extrapola os sentidos do real e vai, mais uma vez, ao campo simbólico.

Neri morreu na luta pela terra, foi acompanhado em procissão na estrada de terra, onde se formou uma cortina de areia por todo o caminho. Ele foi velado em uma varanda de terra batida e, ao fim, passará a eternidade na terra.

A luta indígena, que perdura há séculos, carrega o termo com uma das principais reivindicações: terra. Na repercussão midiática, nos gritos de guerra, nas reivindicações e nos documentos oficiais sempre aparece o mesmo termo: terra.

“Acampamento Terra Livre”, “Demarcação de Terra”, “Mãe Terra”, “Terras Indígenas”, ela sempre está presente nesses exemplos e em outros discursos que circulam.

Para os povos originários, a palavra terra carrega sentidos específicos. “Ressaltamos que, assim como fizeram nossos ancestrais, resistiremos até o fim, mesmo que isso signifique colocar em jogo nossas próprias vidas, para proteger o que é mais sagrado para nós: nossa Mãe Terra”, dizia a Carta Final do 20º Acampamento Terra Livre (ATL), de abril deste ano.

Centenas de pessoas se uniram no velório

Velório de Neri, indígena morto em MS. Foto: Henrique Arakaki

No velório de Neri, ele foi recebido pela mãe, pela esposa e pelo filho de 10 meses. Ele foi acolhido não somente por sua comunidade, Nhanderu Marangatu, mas também por outras comunidades da região, somando centenas de pessoas reunidas no local.

O velório reafirmou a união dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, indo além da despedida do parente Neri — como os indígenas costumam se chamar mutualmente.

Além disso, foi um momento que reafirmou o encontrou de gerações. No local, estavam presentes pessoas que iam de anciões às crianças mais pequenas, que já sabem muito bem a luta que carregam.

Comboio acompanhou o corpo qaté a comunidade

Após a morte, o corpo de Neri foi encaminhado para IML em Ponta Porã. Posteriormente, houve uma segunda perícia, desta vez em Dourados. Depois, o corpo retornou a Antônio João para que Neri fosse velado por seus parentes.

Os indígenas se dividiram em três grupos, com dezenas de pessoas em motos e carros. Um dos grupos esteve concentrado em frente ao ginásio de esportes, que fica próximo ao trevo de entrada da cidade.

Um segundo grupo esteve concentrado em trecho da rodovia MS-384, enquanto terceiro grupo esteve em um ponto da rodovia conhecido como Casa Branca. Veículos da PM e da Força Nacional também acompanham o caminho.

Entre as pessoas, estavam amigos, familiares, conhecidos de Neri, bem como outras pessoas que se solidarizam e lutam pela causa indígena. “Estamos esperando para recepcionar o corpo do nosso guerreiro”, disse um amigo de Neri.

Justiça mantém policiamento em área de conflito

Após a morte do indígena Guarani Kaiowá Neri da Silva, de 23 anos, em confronto com a tropa de choque a Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, a Justiça Federal manteve decisão que autoriza o “policiamento ostensivo”.

O juiz federal Cristiano Harasymowicz de Almeida justifica a decisão sob a prerrogativa de proteção à Fazenda Barra, sobreposta à Terra Indígena Nanderu Marangatu, em Antônio João.

Neri morreu durante o confronto que aconteceu na manhã desta quarta-feira (18). O conflito acontece na área que está em disputa entre produtores rurais e indígenas da comunidade Nhanderu Marangatu.

Terra indígena homologada

A Fazenda Barra, de propriedade de Pio Queiroz da Silva e Roseli Maria Ruiz, está localizada em área homologada como terra indígena desde 2002. Roseli inclusive foi indicada como “especialista” para conciliação do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023).

A advogada Luana Ruiz, que possui cargo no alto escalão do Governo de Mato Grosso do Sul desde janeiro de 2023, é filha dos proprietários da fazenda. Ela defende os pais em ação judicial que tramita há um ano na 1ª Vara Federal de Ponta Porã, contra a Comunidade Indígena Guarani Kaiowá.

A Terra Indígena Ñande Ru Marangatu foi declarada para posse e usufruto exclusivo e permanente do povo Guarani Kaiowá, por meio da Portaria nº 1.456, de 30 de outubro de 2002, e homologada por meio de Decreto Presidencial de 28 de março de 2005. No entanto, a demarcação foi suspensa pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

Em setembro de 2023, Luana Ruiz entrou com ação na Justiça Federal alegando ameaças de invasão de indígenas e pedindo a manutenção da posse. Na época, o juiz federal Ricardo Duarte, não viu indícios suficientes que comprovassem a ameaça descrita pela advogada.

Dias depois, o mesmo juiz federal determinou à Polícia Federal que, se necessário, com auxílio material da Polícia Militar e da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, bem como da Força Nacional de Segurança, efetue o patrulhamento ostensivo nas dependências da propriedade rural da Fazenda Barra.