“Bolsonaro, o implementador da necropolítica e da sociopatia governamental, vem aparecendo, em parte do imaginário popular, como um líder que oferece esperança e consolo. Já quem está efetivamente comprometido com a preservação da vida, é visto, por alguns setores, com indiferença ou desconfiança”, escreve Marcelo Zero
Franklin Roosevelt dizia que pessoas famintas e desempregadas são o material com o qual as ditaduras são construídas. PUBLICIDADE
Roosevelt sabia do que falava. Em sua época, viu a ascensão do fascismo e do nazismo na Europa ser alimentada e consolidada pela Grande Depressão.
Ressentimento, abandono, ódio e desesperança são sentimentos que podem ser facilmente explorados por propostas políticas autoritárias. Basta canalizá-los contra supostos inimigos que precisam ser duramente combatidos. Basta canalizá-los contra falsos culpados pela situação de crise.
Hitler convenceu os alemães castigados pela hiperinflação, a fome, o desemprego e o humilhante Tratado de Versailles que era necessário exterminar os judeus e os comunistas e implantar uma ditadura, o Terceiro Reich, para que a Alemanha pudesse cumprir seu glorioso destino. Deu no deu.
Em sentido contrário, Roosevelt convenceu os norte-americanos que a melhor maneira de defender a democracia era enfrentar, com políticas inovadoras e heterodoxas, os graves problemas sociais causados pela depressão econômica. Deu certo.
Contudo, apesar de falso e enganador, o discurso autoritário pode ser muito sedutor. É isso que explica, em grande parte, a ascensão de Bolsonaro e seus atuais níveis altos de popularidade, em meio ao caos e à morte. Afinal, como já bem sabia Goebbels, o que importa, em política, não é a realidade, mas a sua percepção. https://4286742f8b9a13ba36082c9de9ce7c90.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html
Em primeiro lugar, o discurso autoritário é sedutor porque é sempre simplificador e maniqueísta. De um lado, há o mal a ser combatido, o inimigo que está entre nós, que precisa ser exterminado. De outro, o líder que nos salvará do suposto inimigo responsável por todos nossos problemas. É um discurso de apelo religioso, que oferece explicações e “soluções” simplórias e fictícias para problemas reais e complexos. Por isso mesmo, tem grande apelo, especialmente em situações de crise.
Trump, por exemplo, elegeu-se oferecendo uma explicação ao mesmo tempo simples e enganosa para os problemas dos EUA, regada a discurso de ódio e fakes news. A China e os imigrantes estariam roubando os empregos dos norte-americanos. A “solução”, portanto, é o America First e o muro na fronteira com o México. Isso é completamente falso. A falta de empregos decentes e a concentração de renda nos EUA são originadas pelo neoliberalismo e a financeirização do capital, associada à hegemonia do dólar. Mas essa é uma explicação abstrata, de difícil entendimento. É muito mais fácil dizer que são os chineses e os imigrantes.
No caso de decisão sobre o Brexit, no Reino Unido, foi a mesma coisa. Os defensores da saída daquele país da União Europeia ofereceram também uma explicação simples e enganosa para o crescimento da concentração de renda e a falta de geração de empregos decentes no Reino Unido. A culpa estaria na União Europeia e na “invasão” de imigrantes. Chegou-se a se afirmar, no auge da campanha, que o Reino Unido seria invadido por 70 milhões de imigrantes turcos, caso o país permanecesse na União Europeia. Coisas semelhantes aconteceram em outros países da Europa, também tomados pelo que se convencionou denominar de “populismo de direita”.https://4286742f8b9a13ba36082c9de9ce7c90.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html
No Brasil, Bolsonaro se elegeu da mesma forma. Estimulado e amparado por amplos setores das oligarquias e da grande imprensa que hoje o renegam, Bolsonaro também ofereceu uma “explicação” maniqueísta e falsa para os problemas do Brasil. O problema estava no PT e nas esquerdas, que mergulharam o país na “corrupção”, que queriam mudar a bandeira do Brasil, que atacavam os valores cristãos e familiares e que promoviam a pedofilia e a “ideologia de gênero”. Bastava, portanto, mandar os petistas para o exílio ou para a “ponta da praia” (assassiná-los) para que tudo ficasse bem. O bolsonarismo é filho do antipetismo.
Mas a sedução não fica apenas nisso. Em segundo lugar, o discurso autoritário oferece pertencimento e redenção. Hitler oferecia aos ressentidos e deserdados da Alemanha uma identidade comum, reforçada pelo uso de uniformes e símbolos grandiloquentes, e a promessa de participar de um novo e grande Reich. Como em um ato religioso e catártico, as pessoas saiam das manifestações, regadas com os discursos de Hitler, reconfortadas, amparadas e motivadas. O ódio era combinado com esperança.
Trump também fez a mesma coisa. Ofereceu aos deserdados do Rust Belt a promessa reconfortante do America First, a esperança de terem sua antiga afluência e glória restauradas. Na campanha do Brexit, o lema foi “take back control” (retomar o controle), assinalando, dessa forma, que a União Europeia e os imigrantes tinham controlado o Reino Unido e que, agora, o cidadão comum retomaria o controle sobre seu destino, ao sair do bloco e impedir a imigração que destruía seus empregos e sua identidade. Fora da UE e livre de imigrantes, o Reino Unido voltaria a ser grande.
No Brasil, Bolsonaro fez algo semelhante. Deu coesão e sentido a um conservadorismo difuso, com a devida uniformização de camisetas da CBF, e ofereceu a promessa falsamente redentora do “Brasil acima de tudo”, “puro” e livre de esquerdas, de “ideologia de gênero”, de movimentos antirracistas e antihomofóbicos, de intelectuais, de artistas, etc.
Agora, no meio da crise e da pandemia, Bolsonaro e seu governo, ao contrário de certos setores das oposições, souberam, além de tomar medidas para recompor sua base política no Congresso, calibrar bem seu discurso sobre a crise e a pandemia.
Na atual conjuntura, em que as pessoas estão amedrontadas e fragilizadas, busca-se algo que lhes dê alguma segurança e esperança, ainda que ilusórias e baseadas em grosseiras mentiras.
Bolsonaro investe nisso com eficiência, como estão demostrando as pesquisas de opinião. Abandonou, parcialmente, sua postura agressiva e tenta passar a imagem de “presidente protetor”.
Ele diz que não é nada grave, que vai passar logo, que as pessoas têm de prosseguir suas vidas normalmente. Desfila pelo país exibindo a cloroquina como se fosse hóstia consagrada e miraculosa. Sai às ruas e mistura-se à população que é obrigada a trabalhar. Contrai o vírus e se cura logo, demostrando sua “tese”.
Para a população com baixo acesso à informação fidedigna, submetida a enxurradas de fakes news, e que é obrigada a se expor, esse discurso, embora totalmente desconectado da realidade, é atraente. Bolsonaro projeta coragem, segurança e otimismo para uma população que precisa disso desesperadamente.
A sensação de falsa “normalidade”, trazida pelo abandono precoce e irresponsável do isolamento social, contribui também para criar um sentimento enganoso de segurança, que é bem aproveitada pelo bolsonarismo. Os R$ 600,00 do auxílio proposto pelo PT no Congresso, e “faturado” politicamente por Bolsonaro, ajudam, mas estão longe de ser o fator determinante.
Enquanto isso, alguns setores da oposição, que ficam em casa e apostam, corretamente, no isolamento social, investem num discurso muitas vezes apocalíptico, que amedronta ainda mais e provoca rejeição e mesmo certo ressentimento, nesses setores populares.
As pessoas, já muito cansadas, após anos de crise e meses de pandemia, querem ver a luz no fim do túnel e ter sua normalidade de volta. Portanto, preferem escutar quem tem a oferecer alguma mensagem de otimismo. Querem a percepção de normalidade. Não querem mais saber de mortes e doença, desde que isso não as afete diretamente. A sociopatia governamental espalhou-se por vastos segmentos sociais, sob a forma de indiferença crescente.
Criou-se, assim, um terrível paradoxo na política brasileira. Bolsonaro, o implementador da necropolítica e da sociopatia governamental, vem aparecendo, em parte do imaginário popular, como um líder que oferece esperança e consolo. Já quem está efetivamente comprometido com a preservação da vida, é visto, por alguns setores, com indiferença ou desconfiança.
É claro que a desconexão entre esse discurso enganoso e a terrível realidade sanitária, econômica e social do Brasil atual só pode funcionar durante algum tempo.
A tendência é que essa desconexão se amplifique, pois a agenda ultraneoliberal, que une a extrema direita bolsonarista e a direita anti-bolsonarista, tende a agravar ainda mais o quadro sanitário, econômico e social do Brasil.
Entretanto, isso não assegura a fragilização do fascismo tupiniquim e a proteção do que restou da democracia brasileira. Ao contrário, a ruptura da desconexão pode implicar a ruptura definitiva com democracia. A coisa pode piorar. E muito.
O chamado “centrão” e a grande mídia, que hoje torcem o nariz para Bolsonaro, querem salvar a agenda de Guedes a qualquer custo. Não percebem que essa agenda gera as condições econômicas, sociais e políticas que favorecem o surgimento de “bolsonarismos” e a fragilização crescente das democracias, mesmo em países mais desenvolvidos. Insistem também no antipetismo, que alimenta o bolsonarismo, tal como o antisemitismo alimentava o nazismo.
O teto de gastos é, sobretudo, um teto decrescente para a democracia brasileira. Um limite inaceitável ao investimento na vida.
Assim sendo, o único caminho de resistência possível ao bolsonarismo passa pela união dos autênticos democratas em torno de uma agenda que, ao menos, questione os dogmas carcomidos do neoliberalismo e do austericídio e que tenha como ator relevante o PT, o único grande partido popular de massa do país.
Essa nova agenda tem de projetar futuro, segurança e otimismo. Não adianta apenas criticar Bolsonaro e desenhar um cenário de apocalipse.
É preciso oferecer ao povo do Brasil alternativa real ao mercado de ilusões simbólicas do bolsonarismo e do neoliberalismo. Alternativa real à necropolítica de ambos.
Nos próximos dias, o PT apresentará ao país um plano com medidas concretas e factíveis, de curto, médio e longo prazo, para lidar não apenas com a pandemia, mas com todas as ameaças à vida geradas pelo neoliberalismo e o autoritarismo fascista que adoeceu o país.
Não são ilusões. Não é a cloroquina das “reformas” neoliberais que fracassaram no mundo inteiro. São ações e políticas que visam reconstruir e transformar o Brasil em novas bases econômicas, sociais, ambientais e políticas.
Medidas destinadas a evitar que pessoas famintas, desempregadas e amedrontadas se transformem no material com o qual as ditaduras são construídas.
Fonte: Brasil 247