Ex-presidente descarta seu nome como candidato e diz que gostaria de uma liderança tucana disputando as eleições presidenciais
Fernando Henrique Cardoso está no rol dos políticos longevos que mantêm sua influência. Uma voz ouvida com frequência, que reverbera além das ideologias e dos jogos políticos. Moderado e honesto em suas colocações, o ex-presidente não se exaspera com os atos do governo Bolsonaro, mas também não se cala.
Não acredita que estamos na antessala de um golpe, pois não vê as Forças Armadas como aliadas à ideia de uma ruptura democrática. Também não crê que o impeachment seja solução, defende alternância de poder, descarta seu nome como candidato e gostaria de uma liderança tucana disputando as eleições presidenciais.
“Eu não sou líder do PSDB a ponto de ser ativista. Eu posso, talvez, ter sido inspirador, num certo momento, apontando um caminho para o Brasil. Se depender de mim, é importante ter candidatura própria, é assim que os partidos se afirmam. Tem que ter uma liderança que afirme um sentimento que bata no coração das pessoas”, diz nesta entrevista ao Correio.
Mas, diante de um Brasil polarizado entre Lula e Bolsonaro, não nega suas preferências. E explica: “No momento, eu penso que a de Lula é menos traumática para o Brasil, de forma direta. Isso não quer dizer que eu não queira uma via pelo PSDB, claro que eu desejo, mas uma coisa é você desejar e trabalhar neste sentido, e outra coisa é analisar a realidade. Assim, por ora, entre Lula e Bolsonaro, acredito que o Lula seja melhor”.
Segundo FHC, “Bolsonaro não acalma os ânimos, polariza”. E o ex-presidente não é a favor da polarização. Tampouco do impeachment, que avalia como um processo traumático que não contribui para a democracia de um país. “É preferível que ele fique na presidência e perca no voto”, diz.
E se o senhor fosse o nome de conciliação para uma possível terceira via em 2022?
Eu nunca pensei nessa possibilidade, e acho que não tem muita concretude. Eu tenho 90 anos, a Presidência é um encargo pesado, além do mais é preciso ter disposição pra entrar em acordos políticos, e eu não sei se, a esta altura da vida, eu gostaria disso. Provavelmente, não.
A democracia no Brasil tem força para chegar a 2022, apesar de ameaças à eleição, ataques ao Judiciário, elitização do sistema eleitoral e desfile de blindados na Praça dos Três Poderes?
Eu acredito que a democracia tem força para chegar, a despeito dos ataques, que são, na verdade, mais verbais do que efetivos, ou são simbólicos, digamos assim. Mas eu não acredito que haja sentimento antidemocrático no povo brasileiro. Com isso, desde que as lideranças que não estejam de acordo com essa possibilidade de fechamento se manifestem, eu não creio que haja viabilidade de fechar. Você consegue fechar um regime político quando você tem as Forças Armadas do seu lado. Eu não creio que exista tendência, nas Forças Armadas brasileiras, de apoio a um golpe militar.
O Brasil é viável?
O Brasil é viável. Já demonstrou que é viável. Nasci em 1931. Portanto, faz 90 anos. É muito tempo. O Brasil melhorou muito de lá pra cá, e naquela época já era viável, mas hoje é muito mais.
É possível ter um olhar poético diante deste momento difícil?
Olhar poético não é conveniente, porque a pandemia é realmente pesada, está matando muita gente. Então, não convém ter um olhar poético. Tem que ter um olhar efetivo. A saúde pública tem que funcionar. E está funcionando, pois estão vacinando. A disposição do povo brasileiro de tomar a vacina é uma coisa que é antiga e louvável.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
No meu ponto de vista, as coisas pioraram. Porque eu fico mais tempo em casa. Não que seja ruim a minha casa. Eu sinto falta de conversar, de falar com os amigos, de jantar, de ir à Fundação (Fernando Henrique Cardoso) sobretudo, e de ter contatos nacionais e internacionais. Tudo isso ficou muito restringido. A gente se adapta, o ser humano tem essa qualidade, de ser um ser adaptativo, mas não acho que seja o momento ideal.
O momento exige resiliência e ativismo solidário. Pessoalmente, engajou-se em alguma atividade coletiva a distância?
A distância, sempre que possível, sim. No que for necessário, podem contar comigo, que eu estarei disposto a emprestar o meu nome. Se servir, está à disposição das boas causas. Recentemente, fui convidado para ser um dos embaixadores da Fundação para a Amazônia Sustentável (FAS), que desenvolve um importante trabalho na região.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
A pandemia pode reforçar bastante os valores humanistas da sociedade, porque o outro fica visível, queiramos ou não. Tem que ver. No prédio onde eu moro, em São Paulo, um bairro de classe média alta, embaixo da janela da minha casa tem uma pessoa que mora numa escadaria. Eu posso vê-la. Então, isso obriga a pessoa a se perguntar, por que está assim? Se eu vou à fundação, no centro de São Paulo, ali tem muita gente vagando pelas ruas. Então, você vê, forçosamente. Mesmo os que não quiserem ver têm que ver que o Brasil não é composto só de ricos, que tem muita gente pobre precisando de apoio.
Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?
A questão da pobreza vai ser maior ainda do que foi antes. Ou seja, haverá que se tomar mais em consideração as condições de vida das pessoas que mais necessitam. Será que vai acontecer? Depende, como tudo na vida contemporânea, das lideranças, de existir pessoas realmente que se disponham a tomar posição claramente a favor dos que mais necessitam.
Que ensinamento este momento nos deixa?
Nos deixa muitos ensinamentos. Primeiro, nos torna mais humanos, no sentido de que, apesar de vivermos isolados, temos que olhar para o outro. Sabemos que o contágio existe. Isso é importante. E também é preciso reconhecer que no Brasil há uma tradição que não é de agora, é antiga, de vacinação, isso é muito bom. Os nossos médicos e enfermeiros, os profissionais da área da saúde no Brasil, são dedicados. É preciso que se retribua, tendo consciência da necessidade de se vacinar.
Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia?
Eu vejo com preocupação. Não há setor da sociedade que não tenha sido alcançado por esta pandemia, direta ou indiretamente. Mas muitos são diretamente. E, embora seja uma maneira desagradável de tomar consciência do que existe, é uma forma também de tomar consciência, inclusive, de que qualquer ser humano está sujeito à mortalidade, pode pegar o vírus e ir embora. É rico ou é pobre, é pardo ou indígena, não importa, somos todos iguais.
Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões?
É provável que sim. Eu não gosto de ficar acusando o governo, por que é fácil acusar. No Brasil, há uma certa mobilização, a sociedade tem o hábito da vacinação, e a mídia tem um papel fundamental de dar maior consciência da necessidade das pessoas. Isso mostra que o Brasil tem condição de avançar. A despeito de a pandemia ser negativa, vamos superá-la.
Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
Eu não sei se há exemplos a seguir. Porque, neste caso, nós temos que olhar para a nossa própria capacidade de vacinação. O único remédio que existe é a vacina, não tem um outro remédio específico que cure esta moléstia. Então, tem de se expandir mais e mais a tendência de vacinar. Agora, claro que os países mais ricos têm mais condições. Os Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, por exemplo, são países ricos, mas isso não quer dizer que sejam mais eficientes neste tema. Especialmente, nós, que temos uma predisposição a aceitar melhor o novo.
A importância da união em torno de um projeto suprapartidário para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos é possível?
Não sei se é possível, mas é desejável. A pandemia mostra que, em certas matérias, é preciso haver união, porque não adianta jogar pedra um no outro, todos se ferem, e os feridos verdadeiros são os que estão sofrendo as consequências negativas da pandemia, ficam à margem deste processo.
O senhor e os ex-presidentes Sarney e Temer têm um encontro em setembro para discutir as saídas para o Brasil?
É possível que este encontro aconteça. Eu me dou bem com todos os ex-presidentes, inclusive com o presidente Lula. Nesta hora é importante que os vários presidentes se mobilizem, e se eles puderem significar alguma coisa, nós temos que estar juntos em defesa dos interesses do povo brasileiro.
A persistir a polarização, qual reeleição lhe parece menos traumática para o Brasil: a de Lula ou de Bolsonaro?
No momento, eu penso que a de Lula é menos traumática para o Brasil, de forma direta. Isso não quer dizer que eu não queira uma via pelo PSDB. Claro que eu desejo. Mas uma coisa é você desejar e trabalhar neste sentido, e outra coisa é analisar a realidade. Assim, por ora, entre Lula e Bolsonaro, acredito que o Lula seja melhor.
A terceira via tem alguma chance nas próximas eleições?
Depende das lideranças. A terceira via é um conceito. No Brasil, as pessoas têm que transformar as ideias em pessoas. Na vida política, você tem que ter lideranças. Espero que o PSDB se posicione, aceitando que ele tem que ter uma visão de união nacional, buscar alguém que expresse um sentimento e seja reconhecido pelo povo como viável. Quando nós (PSDB) chegamos ao governo, especialmente quando estive na presidência, que houve mais preeminência do PSDB nacional, era porque nós expressávamos um sentimento que vai além das nossas fronteiras. Hoje, há mais necessidade ainda, porque os partidos estão todos mais desgastados. Então, é necessário que haja um reencontro, a partir de uma proposta de reconstrução do país.
PSDB lançará candidato próprio?
Eu não sou líder do PSDB a ponto de ser ativista. Eu posso, talvez, ter sido inspirador num certo momento, apontando um caminho para o Brasil. Se depender de mim, é importante ter candidatura própria, é assim que os partidos se afirmam. Tem que ter uma liderança que afirme um sentimento que bata no coração das pessoas.
O senhor disse que o governo Temer era uma pinguela. Como classifica o governo Bolsonaro?
O governo Temer era uma pinguela porque era um caminho possível naquele momento, e o presidente Temer atravessou a pinguela aceitando uma fase difícil de ser presidente da República, e sendo presidente e tratando de acalmar os ânimos. O governo Bolsonaro não acalma os ânimos, polariza. Eu não sou favorável à polarização.
Seu elogio ao ex-presidente Lula causou frenesi. O brasileiro de hoje perdeu o fair play?
Eu acho que sim. Eu conheço o Lula há muitos anos. A primeira vez que eu fui à casa dele, ainda era líder sindical em São Bernardo. Naquela época, era uma pessoa realmente pobre. Eu o acompanhei a minha vida inteira, quer dizer, no sentido político, no percurso do Lula, e fizeram disso um cavalo de batalha. Eu falo com o Lula como falo com qualquer outro presidente. Se o Bolsonaro me chamar para conversar, eu vou dizer que não? Eu converso também. Agora, evidentemente, que cada um tem lá as suas ideias. Se for possível algum encontro, em qualquer momento, se dará através de objetivos, e não através de personalidades.
Há mais de 130 pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Hámotivos para afastá-lo?
Eu preferia que não houvesse. É preferível que ele fique na Presidência e perca no voto. Eu já participei de impeachments, é um processo traumático. Às vezes, você é levado à um impeachment pela ação da pessoa. Se o presidente Bolsonaro perceber que ele não deve transgredir certas regras, talvez seja melhor para o Brasil. Eu acho que é melhor que haja uma eleição e que a eleição seja o modo pelo qual se elege o presidente. Você truncar um mandato, eu não acho que seja construtivo para a democracia de um país.
O Brasil enfrenta uma criseinstitucional? Ela é causa ouefeito do que vivemos hoje?
O Brasil sempre enfrenta dificuldades institucionais, mas eu não diria que seja uma crise institucional. Eu já assisti a várias crises. Nos tempos do Getúlio ou do João Goulart, era diferente. Você tem não só a oposição política, mas a sociedade está rachada, está disposta a um matar o outro, e aqui não há esse sentimento, pelo menos de minha parte. Se houver crise institucional, a responsabilidade será de quem a provocar, se entendi bem a pergunta. Quem pode provocar uma crise institucional é o presidente da República, que tem que se conformar com a divisão de Poderes, e o Congresso também tem que ter noção do que pode e o que não pode. Invocar toda hora impeachment não faz bem à democracia.
Onde está o “coro dos lúcidos”, tão essenciais em um momento tão grave? A polarização ceifou nossa capacidade de diálogo?
Eu espero que não tenha ceifado. Apesar de existir uma polarização, ela não chegou ainda a ponto de ceifar a capacidade de diálogo, mas é preciso que aquele que seja mais lúcido, usando a sua expressão, entenda que diálogo não quer dizer adesão. Quer dizer: vamos conversar para ver qual é a saída para o impasse que exista. E, no momento da eleição, temos que ter saídas que sejam distintas, uma ou outra saída, e o povo escolhe, vota, isso é importante; manter a estabilidade do voto, manter a alternância de poder, pelo menos no meu ponto de vista.
O que é preciso mudar no sistema político para que a política seja uma seleção dos melhores e não dos piores elementos?
Eu não sei se a política será a seleção dos melhores. A política representa a expectativa do povo brasileiro e tem que haver liberdade, é um processo lento. Às vezes, os melhores ganham, mas não é sempre, depende de como se apresentem a uma dada situação para a população. Isso é um processo civilizatório que leva tempo. Lembro das épocas em que não havia democracia no Brasil. Tivemos as Diretas Já. Foi importante para manter as instituições funcionando, a imprensa livre. Enfim, o sentimento de liberdade é tão importante quanto a construção da democracia, que não é a mesma coisa. A democracia significa que, além da liberdade, você tem instituições que a asseguram e permitem a participação das pessoas. Este é o sistema mais capaz de atender aos anseios das pessoas e manter a liberdade.
Por que as redes sociais permanecem uma terra sem lei e, certas vezes, ameaçam a democracia?
Nós temos que adaptar a democracia à existência das redes sociais. Isso é uma novidade tecnológica. Eu me lembro, eu era professor na Califórnia, e estavam começando discussões sobre as redes sociais, ninguém imaginou que fosse dar no que deu. Deu numa balbúrdia muito grande, mas isso é transitório. Nós temos que nos acostumar que as pessoas vão se informar, vão tentar influenciar. Cada um pensa que pode e, com o tempo, vai ver que pode até certo ponto. São necessárias instituições, liberdade e o voto como instrumento de aferição da veracidade do que sai nas redes. Eu não sou seguidor disso ou daquilo nestas redes, mas uso com certa frequência para minha comunicação. Ou nós adaptamos o jogo democrático à existência de redes ou nós vamos perder o jogo. Temos que fazer com que as pessoas passem a saber que a rede é a opinião bruta de cada um de nós, e que os partidos são uma espécie de pré-seleção de objetivos. Assim, os partidos têm que se adaptar ao funcionamento das redes. Não dá pra recuar, afinal, ela veio pra ficar.
Como o senhor quer ser julgado pela história? Seu livro de memórias é sua obra mais completa?
Não sei…a gente sempre pensa que o último livro é o melhor, mas não é. A gente tem que deixar que o tempo aponte o que é bom e o que é mau. E eu sei lá se eu vou ser lembrado na história. Para ser franco, eu não fico preocupado com essa questão, sinceramente.
Fonte: Correio Braziliense