As obras milionárias de Mato Grosso do Sul que transformaram antigos corredores de comitivas pantaneiras em rodovias cascalhadas é o sintoma do processo que pode marcar o fim do Pantanal como o conhecemos. Segundo os pantaneiros, as áreas alagadas diminuem a cada ano, conforme aumenta, sem controle ambiental, o uso das fazendas para pecuária ‘moderna’, focada na cria, recria e engorda.
As estradas cascalhadas escancaram a maior área alagável e uma das maiores biodiversidades do planeta para caminhões boiadeiros, além de quadrilhas de narcotraficantes e arrastadores de carros roubados.
Quem denuncia não são apenas militantes ambientalistas, mas, também fazendeiros que ainda resistem ao assédio de quem quer comprar terra no Pantanal ‘a preço de banana’.
Apesar da exclusividade e exuberância do paraíso ecológico, a região pantaneira tem um dos hectares mais baratos do Brasil. Virou alvo de conglomerados empresariais e novos ricos, geralmente ligados a políticos, que priorizam o lucro.
A produção do gado em ritmo industrial, que produz cada vez mais gado no menor tempo possível, atrai os ‘novos donos’ para a vastidão intocada do Pantanal. Eles têm comprado cada vez mais terra no Pantanal, tirando do controle os fazendeiros tradicionais, que aprenderam a conciliar a pecuária extensiva com a preservação do ambiente nos últimos 80 anos.
Foi assim que uma área de aproximadamente 6 mil hectares caiu nas mãos do empreiteiro André Luis dos Santos. Ele mesmo foi contratado pelo Governo de Mato Grosso do Sul para construir a MS-228, e usou os mesmos equipamentos para desmatar 1.300 hectares da área que comprou ao lado da nova rodovia.
Legislação omissa, TACs de mais, punição de menos: de quem é a culpa?
Corretores de imóveis e pantaneiros relatam como o mercado imobiliário da região sempre foi foco de quem tem acesso rápido a dinheiro e poder.
“Vira e mexe tem alguém ligado a um ou outro grupo político procurando terras grandes. A gente atende igual e tenta saber o mínimo possível, mas são muitas histórias de fortunas pagas em dinheiro vivo, por exemplo”, relata corretor com mais de 15 anos de experiência na venda de fazendas em MS.
Para ele, nos últimos anos grandes grupos começaram a se interessar por dois motivos básicos. Primeiro, o preço da terra, que é um dos mais baixos do Brasil, e segundo, por causa da lacuna na legislação ambiental para Mato Grosso do Sul, que mantém o Pantanal como último ecossistema onde é possível ‘passar a boiada inteira’. Literalmente.
Quem deveria atuar na preservação, como o MPMS (Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul), reclama que falta legislação capaz de frear os ímpetos destrutivos de quem quer lucrar no Pantanal o máximo possível no menor tempo possível.
Militantes ambientalistas acham que há omissão generalizada por parte dos membros ministeriais em Mato Grosso do Sul quando o assunto é crime ambiental, com excesso de TACs (Termos de Ajustamentos de Conduta) e leniência excessiva do órgão ministerial, principalmente quando os implicados têm laços políticos.
“Você apenas mandar um cara replantar nas áreas que já destruiu, de onde tirou toda madeira de lei, já explorou o que tinha que explorar, chega a ser vergonhoso. Esses acordos vieram para enterrar de vez a punição dos crimes ambientais em Mato Grosso do Sul”, denuncia pesquisador que diz já ter denunciado flagrantes que acabaram ‘apenas em TACs’.
Regionalmente, os deputados estaduais sul-mato-grossenses enterraram um projeto da Amarildo Cruz que tentava ajustar a situação do Pantanal. Agora, com a repercussão das denúncias de desmatamento criminoso no Pantanal, o presidente do Legislativo, Gerson Claro (PP), disse que ‘se falta legislação, vão atuar’.
Patrão anteviu o que aconteceria com o Pantanal, diz pantaneiro
Justino Vilalba tinha 15 anos quando um patrão anteviu o que aconteceria com o Pantanal. Nascido e criado na região da Nhecolândia, conta que assumiu o comando de uma fazenda ainda garoto, ao lado de mais 12 peões.
Na época, o fazendeiro teria dito: “No futuro, isso tudo vai acabar. Muitos filhos aqui vão assumir as terras sem saber administrar e, os netos, menos ainda”. Aos 63 anos, passa pelos mesmos locais com comitivas e presencia a destruição. Na mesma linguagem, porém, em outras palavras, também alertam ambientalistas sobre os recentes crimes ocorridos no Pantanal sul-mato-grossense.
“Eu tenho 50 anos de experiência neste Pantanal. Conheço de ponta a ponta. É só falar do peão cabelo que todo mundo conhece. Viajei muito para o interior levando gado. Ivinhema fui muito, até para o estado de São Paulo e o ‘paranazão’, em cima do boi. Lá na fazenda Lageado, em Aquidauana, tem uma foto minha grande no escritório tocando berrante. O Pantanal é a minha casa. Mas, agora tá muito triste. O desmatamento ‘cadiou’ o nosso rio, ‘cadiou’ e matou tudo. E quem fez isso? Foram os fazendeiros”, afirmou.
Da década de 70, quando o Pantanal teve duas enchentes, mais especificamente no ano de 1974 e depois em 1988, o peão fala que o cenário foi se transformando cada vez mais. Nesta época, era fácil ver “cavalos e a boiada” nadando, sendo que só paravam para “não cansar demais os animais”. Além disso, ao parar, os pantaneiros “chegavam nos corixos e pegavam peixes”, como piranha e pacu.
“Hoje em dia nem bagre se acha mais. Foi o desmatamento. Acabou com tudo aqui. Tudo foi sendo desmatado por fazendeiros que só pensam em lucro e aí o rio Taquari foi ficando esse areião. Vem a chuva, a erosão e a areia vai pra dentro do rio. Entupiu. O rio corre, mas, não é mais aquele Taquari. Agora é seco”, lamentou Justino.
Com as enchentes, o peão fala também que “morreu gado de muitos fazendeiros”, principalmente na ocasião em que a água veio de surpresa, sendo este um fenômeno característico do Pantanal.
“Depois, só foi secando. A gente via os campos limpos antigamente. Hoje o cenário é outro. A gente vê os jacarés empilhados todos morrendo. Muita fome. E o jacaré vive de peixe, de porco, de leitão, de bichos pequenos, só que isso quase não tem mais no Pantanal. Agora tem incêndio e devastação. Lá pra Serra do Amolar até onça vi morrendo queimada. O animal não tem pra onde correr”, garantiu.
‘Grande mentira foi revelada’, fala peão sobre recria no Pantanal
Ao falar sobre a cria e, mais recentemente, a recria de gado no Pantanal, Justino comenta que uma “grande mentira” foi revelada. “Sempre falaram que o gado não era nocivo para o Pantanal. Só que, do jeito que estão fazendo, é sim. Os fazendeiros de antigamente não desmatavam perto do rio, nas cabeceiras. Existia muito gado, muito fazendeiro rico, só que eles não pensavam só em lucro como os de agora. É o contrário desta atual geração”, conta.
Nascido na área rural, o peão fala que, em questão de dez anos, muita coisa mudou na região pantaneira. “Eu nasci em 1962 e, em questão de dez anos, vi muita coisa mudar. Antes, existia premiação nas fazendas. Todo final de ano a gente ganhava presentes, nossos filhos também. O patrão dava vez pra gente criar gado, cavalo, galinha, porco, ele não ligava não. Ali os filhos cresciam, formava um funcionário da fazenda e ele casava ali mesmo. Era todo mundo uma grande família. Hoje em dia não pode criar um pinto, um guachinho, que o patrão fala: ‘De quem é este pinto? É meu. E ele responde que não, que está lá, então, é da fazenda. Só pensa em dinheiro”, lamenta.
‘Tudo desmatado por conta da pecuária’, avalia chefe da comitiva
Comandante de comitivas há quatro décadas, Nilzo Gonçalves Conceição, de 54 anos, explica que fica “na culatra”, ou seja, no final, enquanto os outros peões vão conduzindo o gado. Criado em uma fazenda no Pantanal da Nhecolândia, fala que o pai trabalhou com a cria da boiada, enquanto ele, a recria. Por conta disto, comenta que, “antigamente não tinha desmate”. Hoje, o que predomina é “a seca e o desmatamento”.
Quando jovem, Nilzo falou que os peões sempre diziam que “janeiro tinha chuva e maio tinha vento sul”. Ou seja, o frio. “A gente era acostumado a ver os animais nadando e, muitas vezes, tinha que parar porque ele cansava muito. Tinha muita água. Agora é tudo desmatado por conta da pecuária, da recria. Essa vacada de agora mesmo eu peguei de uma fazenda e estou indo levar para outra, no próprio Pantanal. A maioria tá prenha, então, antes tinha a cria para exportação. Hoje é a recria do gado que manda, então, o desmatamento é o futuro capim do gado”, argumentou.
De acordo com Nilzo, conhecido como “bolinha” na região, o pai foi peão, ele seguiu o mesmo caminho e agora o filho. “É a terceira geração de peão já, só que o meu filho e o meu neto, de 12 anos, não vão ver nada do que eu presenciei. É triste, mas, eu penso que o futuro disso aqui é uma sequidão véia braba. Imagine, esses tempos eu vi, perto do mangueiro, centenas de jacarés mortos. Acho que posso falar que tinha uns 200”, finalizou.
O microempresário Luis Cláudio do Carmo, de 33 anos, conta que o pai chegou no Pantanal em 1992. “Hoje aqui é totalmente diferente. A gente plantava e a cheia vinha certinha todo ano. Com o tempo, foi mudando a regularidade. Nos últimos tempos, foram quatro anos sem cheia aqui. Esse ano que caiu uma água aqui e, se fosse em épocas passadas, dava para encher todo Pantanal, só que não encheu. Estamos vindo de uma seca de quatro anos, então, foi suficiente só para abastecer vazantes e baías”, comentou.
‘Ofereço transporte de gado no Pantanal’, diz microempresário
Desta forma, morrendo de fome, muitos jacarés morreram ou serviram de alimento para outros. “Vi uma cena que nunca tinha visto por aqui no ano passado, que é ariranha comendo jacaré, então, muita coisa mudou. Antes, lembro de passar no Porto da Manga e ver sucuri e hoje nem vejo mais. O número de animais diminuiu muito e o gado aumentou. O fluxo da estrada também aumentou e aí a gente foi se adaptando, até compramos caminhões do Exército em um leilão para oferecer transporte de gado”, explicou.
Conforme Luis, a mata virgem deu origem ao confinamento do gado e, em pouco tempo, ele acredita na integração lavoura-pecuária. “Em questão de 15 a 20 anos, essas terras vão virar soja, cana, lavoura e espaço para o gado. Nós mesmo, tínhamos só uma conveniência, mas, fomos ampliando e compramos os caminhões para oferecer o transporte em todo o Pantanal. São caminhões adaptados com carroceria, que aguentam a cheia e a seca, então, fazemos esse serviço, de ponta a ponta. Oferecemos também o sal, coisa que não tinha antes”, falou, mostrando o barracão e as adaptações feitas no local.
Supervisor de campos experimentais na Fazenda Nhumirim, pertencente à Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), Cleomar Bercelli conta que chegou no Pantanal em 2009. Desde então, intercala os trabalho de pesquisa em campo, com a coleta de dados na invernada e as viagem até a sede, em Corumbá, distante a cerca de 160 km. Nitidamente, fala que presenciou mudanças no Pantanal e também defende a conservação do bioma.
“Nós sempre tivemos a mesma batida aqui, só que as coisas foram melhorando. A energia elétrica chegou nas fazendas ao longo deste tempo. Só algumas, as mais distantes mesmo, é que ainda não usufruem eu acredito. Agora também estamos com internet. Agora as comitivas parece que diminuíram muito, enquanto o movimento no aterro, nessas estradas, aumentaram”, opinou.
Defensor da conservação, Cleomar fala que a fazenda possui 1,1 mil hectares de reserva legal e, mesmo assim, é feita a criação sustentável de gado, cavalos e carneiros. “Acredito que, dentro das pesquisas que fazemos, respeitando também a base da legislação, é viável sim. Agora, a questão da legislação, de ser 20% aqui e 80% na Amazônia, por exemplo, deve ser revista. É até uma questão que está sendo levantada por políticos, principalmente porque vão desmatando tudo. Uma pessoa vende uma pedaço da fazenda, enquanto chega um de fora e sai comprando tudo, então, não muda a estrutura. Só o dono na verdade”, ressaltou.
Quando o gado chegou no Pantanal?
O gado chegou no Pantanal no século XVII com colonizadores portugueses e espanhóis. A criação, no entanto, começou há cerca de 300 anos. Já a pecuária extensiva, feita em campo aberto, ainda de acordo com pesquisadores, começou na década de 40.
As comitivas, que são típicas da região, são um grupo de peões que conduz o gado em épocas de cheia, levando para as regiões mais altas. Além de contemplar as belezas, as comitivas pantaneiras atuam transportando centenas, até milhares de animais de uma só vez.
No ano de 2018, por exemplo, foi registrada cheia e, mais uma vez os animais foram levados para parte alta. Nesta ocasião, a Embrapa realizou um estudo e ressaltou que 1,3 milhão de cabeças de gado foram transportadas para áreas arrendadas. E o prejuízo, com aqueles que não conseguiram sobreviver ou então chegaram abatidos ao destino, foi de cerca de R$ 280 milhões.