Em Goiás, o celeiro da inovação está no Centro de Excelência em Inteligência Artificial (Ceia), instalado no campus da Universidade Federal de Goiás (UFG), em Goiânia

Campos de soja, milharais, canaviais, rebanhos a perder de vista. A primeira imagem que salta aos olhos na Região Centro-Oeste é a pujança do agronegócio. A força desse setor, que hoje movimenta 23,8% do PIB nacional, passou a ser, também, um dos principais motores das inovações que nascem nesta região. De mudanças genéticas em sementes ao uso de drones capazes de identificar fungos nas folhas de plantas, a alta tecnologia integra, de forma cada vez mais intensa, a cadeia produtiva das principais commodities agrícolas, passando pelas técnicas de plantio, melhoria da qualidade dos alimentos, tratamento do solo e criação de animais.

O impulso tecnológico fica evidente nos dados do mapeamento das startups do setor agro brasileiro, o Radar AgTech Brasil 2023, realizado anualmente pela Embrapa, em parceria com SP Ventures e Homo Ludens, com apoio do Sebrae e do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). Em 2019, existiam 1.125 agritechs no Brasil. Esse indicador saltou para 1.953 companhias em 2023. Pouquíssimas, no entanto, estão sediadas no Centro-Oeste: apenas 6% dessas empresas de inovação têm origem ali. A maioria – 57% – é oriunda do Sudeste.

O uso intensivo de inteligência artificial e robôs agrícolas autônomos avança em direção a uma nova fase do setor, chamada de Agricultura 5.0. Um dos principais polos de desenvolvimento desses sistemas na região é o Instituto Federal Goiano (IF Goiano), na cidade de Rio Verde. Tavvs Alves, coordenador de projetos de inovação para o agronegócio, afirma que os sistemas de vanguarda desenvolvidos na região estão à frente do que se vê nos principais produtores de agro do planeta. “O Brasil está acima do patamar mundial no desenvolvimento de soluções tecnológicas para o agro”, diz o professor, que abandonou um cargo de pesquisador no Texas, nos Estados Unidos, para coordenar o setor do IF Goiano. “A realidade é que o produtor rural está sedento por inovação. Todas as soluções têm gerado ativos tecnológicos, que são levados para o mercado nacional.”

Ele cita o exemplo de um sistema que acaba de criar com a Xarvio Sistema de Monitoramento Agrícola, spin-off da Basf, que consiste em um algoritmo de IA que interpreta a espécie de planta daninha que brota em determinada região, sinalizando exatamente qual tipo de herbicida deve ser usado, sem ter de esperar que aquilo cresça.

Mas isso não é tudo. Ao combinar produtos inovadores e recursos de inteligência artificial, uma nova geração de empreendedores demonstra que a vocação regional não se limita às cercas do agro.

PIONEIRA - Heloisy Rodrigues, primeira mulher a se formar em IA no Brasil: de aluna a cofundadora de startup — Foto: CEIA UFG
PIONEIRA – Heloisy Rodrigues, primeira mulher a se formar em IA no Brasil: de aluna a cofundadora de startup — Foto: CEIA UFG

Em Goiás, o celeiro da inovação está no Centro de Excelência em Inteligência Artificial (Ceia), instalado no campus da Universidade Federal de Goiás (UFG), em Goiânia. É nesse ambiente que têm brotado projetos como o de Lucas Assis. Depois de se formar em engenharia da computação e lecionar na universidade, Assis decidiu partir para aquilo que realmente queria: criar robôs. Em 2018, juntou-se a alguns amigos para criar a Synkar Autonomous, startup especializada em robôs autônomos para transporte de mercadorias. Um ano depois, a Synkar já tinha nas mãos o protótipo de um carrinho autônomo. Em 2020, fez um teste com o aplicativo iFood, para entrega de encomendas em ambientes como shopping center, transportando os produtos das praças de alimentação até os locais de retirada dos motoboys. De usuário, o iFood passou a ser um investidor da Synkar e injetou dinheiro na empresa, ainda em sua fase inicial.

Hoje, a startup possui 20 robôs em diferentes empresas do país, como centros logísticos e shoppings. No Canadá, um dos carrinhos autônomos é usado para identificar, por meio de recursos de IA, fraturas nas calçadas, em decorrência de fortes oscilações de temperatura. Assis afirma que, neste momento, há uma fila de pedidos para produção de mais 285 carrinhos autônomos. O próximo passo é entrar com os robôs em condomínios residenciais. “Algumas semanas atrás, colocamos nosso robô dentro do Big Brother Brasil, da TV Globo, numa ação de marketing, para fazer entregas no programa. Temos uma grande incorporadora de condomínios como cliente”, diz Assis. “Estamos trabalhando agora em uma nova habilidade, para que um robô se comunique com outro e atue como uma frota.”

Em fase mais embrionária, outro projeto em andamento no Ceia pretende criar um veículo autônomo para o transporte de pessoas, mas em solo brasileiro. O trabalho é feito em parceria com a startup inglesa Street Drone. Lucas Araújo, professor e coordenador do Laboratório dos Veículos Autônomos, lidera o desenvolvimento que envolve alunos, pesquisadores da graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. “Estamos na fase de criação de aplicações com uso de inteligência artificial, o que vai permitir que nosso carro reconheça, a partir de sensores e de nosso sistema, qual é o ambiente exato em que está circulando, distinguindo detalhes de cada situação, como pessoas, plantas, calçadas, semáforos etc., fazendo o transporte seguro”, diz Araújo, que se formou no Instituto de Tecnologia de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP), mas voltou para Goiás para se concentrar nas pesquisas. “Não estava satisfeito. Decidi retornar, porque queria ir para a área de inteligência artificial.”

Por trás do avanço de cada projeto está o envolvimento do meio acadêmico com empresas, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg) e a Associação Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), órgão federal que apoia inovação, com repasse direto de recursos financeiros não reembolsáveis. O Ceia é uma das 94 unidades parceiras da Embrapii em todo o país. “O sucesso do centro de inteligência artificial de Goiânia mostra, na prática, a capacidade de inovação que temos nesta região, que não é feita apenas do agronegócio”, diz Francisco Saboya, presidente da Embrapii. Na prática, a ligação entre setor acadêmico, associações de fomento e empresas transformou o Ceia em um captador de negócios. Hoje, o Centro possui 50 contratos ativos ligados a empresas privadas (três delas estrangeiras) e quatro órgãos públicos.

Suas soluções de inteligência artificial, criadas por pesquisadores e alunos, já renderam R$ 70 milhões em investimentos. Anderson Soares, coordenador de pesquisa do Ceia, conta que, devido à procura crescente de empresas, decidiu criar o primeiro curso de graduação em inteligência artificial, em 2019, para ganhar mais escala ao que, até então, ficava concentrado em cursos de mestrado e doutorado.

A primeira turma começou o curso em 2020, na Universidade Federal de Goiás. No fim do ano passado, os 15 primeiros alunos concluíram a graduação. Juntos eles receberam, durante os quatro anos de graduação, R$ 1,4 milhão, em projetos demandados pela iniciativa privada. Na festa de formatura, os alunos não deixaram de lado os recursos de IA: gravaram as vozes de seus professores e captaram suas frequências. Durante o baile, muitos hits da música brasileira foram tocados com a voz de cada um deles.

Nascida em Ceres, município de 103 mil habitantes, no interior de Goiás, Heloisy Rodrigues foi a única aluna mulher entre os formandos. Ao longo do curso, ela realizou projetos para a Datamétrica, gigante da área de call center sediada em Recife. Dessa aproximação, nasceu uma proposta: tornar-se sócia de uma startup nascida dentro da Datametrica: a Macall. Heloisy e mais quatro amigos da universidade deixaram de ser graduandos e passaram a ser sócios da nova companhia voltada à criação de soluções de inteligência artificial para teleatendimento ao cliente. “Estamos, agora, em fase de captar negócios com outras empresas”, diz.

Na mira de investidores
A trilha aberta pela inteligência artificial já coloca empresas de tecnologia do Centro-Oeste no caminho para atrair investimentos mais robustos. Criada em 2012 por três amigos, em Goiânia, a Cilia Tecnologia nasceu com o propósito de facilitar a vida das seguradoras e de proprietários de veículos acidentados, permitindo a realização de orçamento de carros sem a necessidade de ter um perito no local.

No início, o sistema oferecia um banco de dados gigantesco, abastecido por milhares de fotos e informações sobre modelos de veículos e peças, como forma de acelerar a realização do orçamento, a partir de fotos dos carros tiradas por seus donos. Em 2019, porém, a empresa resolveu dar um passo mais ousado, e começou a buscar recursos de IA que permitissem obter, em minutos, um orçamento detalhado, incluindo os preços de reparos internos e externos dos carros, ao confrontar as fotos recebidas dos clientes. Foi uma revolução.

Atualmente, é possível ver na tela, em tempo real, uma análise virtual do carro batido, com o apontamento, em 3D, de tudo aquilo que precisa ser refeito ou trocado, conforme a gravidade do dano identificado. Diariamente, em segundos, sistemas de inteligência cruzam informações de 63,6 mil modelos diferentes de veículos e 18 milhões de peças para fechar o orçamento de cada caso que recebe. Em seu banco de dados, cerca de 250 fotos são inseridas por minuto, vindas de clientes de seguradoras de todo o país. São aproximadamente 10 mil batidas de carro registradas por dia. “Eu brinco, dizendo que viramos o Instagram dos carros batidos”, diz Douglas Camargo, sócio-fundador e diretor de tecnologia da empresa.

A Cilia presta serviços, atualmente, para todas as grandes seguradoras do país, como Bradesco, Tokio Marine, Allianz e Liberty. Apenas a Porto Seguro não faz parte, ao menos por enquanto, de seu portfólio, porque estaria trabalhando em seu próprio sistema. O potencial do negócio iniciado pelos três amigos numa pequena sala de escritório, 12 anos atrás, atraiu investidores de peso. No ano passado, o fundo de investimento Cloud9 Capital, de São Paulo, injetou R$ 110 milhões na empresa. A companhia, que foi avaliada em R$ 176 milhões, persegue os passos da startup britânica Tractable, companhia que presta o mesmo tipo de serviço e que chegou a ser avaliada em US$ 1 bilhão, patamar que conferiu a ela o título de unicórnio. “Somos donos de uma tecnologia ainda mais avançada que a deles, além de termos uma base sólida de banco de dados, que nos permite prestar um serviço ainda mais detalhado. Percebemos que o mundo não sabia disso, que precisávamos de um investidor. Agora, estamos neste caminho”, afirma Camargo.

Francisco Saboya, da Embrapii: “A capacidade de inovação na região não vem apenas do agronegócio” — Foto: Embrapii
Francisco Saboya, da Embrapii: “A capacidade de inovação na região não vem apenas do agronegócio” — Foto: Embrapii

A próxima onda do agro
Outra frente que avança na região, dentro da seara do agronegócio, é a ligada a biotecnologia. Na Embrapa Agroenergia, em Brasília, as inovações se concentram na produção de insumos mais sustentáveis, seja para produção de bioprodutos ou biocombustíveis. Mônica Damaso, coordenadora da unidade Embrapii da Embrapa Agroenergia, lidera projetos inovadores, como o que utiliza algas marinhas ou de água doce para produção de biofertilizantes, ou até mesmo de corante natural utilizado em cosméticos. “Esses projetos já nascem com uma demanda industrial. O agro nos procura com demandas como, por exemplo, criação de biofertilizantes, bioinoculantes, uma ração de mais fácil digestão, e por aí vai”, afirma Damaso. “Ao fim do projeto, seus resultados podem significar, por exemplo, menos uso de produtos químicos, menos aplicação de antibiótico em animais.”

O uso de drones e sensores também avança e desperta a atenção de pesquisadores locais. No Instituto Federal Goiano, autarquia ligada ao Ministério da Educação, estão em desenvolvimento soluções digitais para monitoramento e manejo de lavouras, por meio de imagens aéreas. A tecnologia detecta nematóides (vermes) e realiza recomendações para o manejo desses parasitas na cultura da soja. Um segundo projeto faz diagnósticos e recomendações nutricionais para a cultura do arroz.

Ambas as iniciativas utilizam drones e câmeras especiais que registram frequências espectrais que não são captadas pela visão humana. Cruzando os dados com amostras coletadas no campo, os projetos permitem desenvolver sensores que detectam os problemas na lavoura. Baseadas em um robusto banco de dados e inteligência artificial, as novas tecnologias fazem recomendações de manejo. Dessa maneira, é possível reduzir os custos de produção, aumentar a produtividade e melhorar a sustentabilidade da agricultura.

Os dados nacionais apontam que, de um total de 2.408 projetos realizados junto à Embrapii entre 2014 e 2023, 14% tinham como destino o aprimoramento da agroindústria. “Esse cenário reflete, de fato, a força do setor do agronegócio na economia, mas também revela a nossa necessidade de ampliar a inovação em indústrias que exijam valor agregado, com inovação embarcada”, avalia Francisco Saboya, presidente da Embrapii. Como se vê nesta reportagem, essa é uma realidade que começa a se estabelecer no Centro-Oeste. As múltiplas aplicações das novas demandas de tecnologia na região começam a irradiar para outros setores e criam uma nova frente de expansão da inovação – dali para o mundo.

O MAPA DA INOVAÇÃO DO CENTRO-OESTE
Os principais polos de desenvolvimento tecnológico da região

 — Foto: Época NEGÓCIOS
— Foto: Época NEGÓCIOS

1- Brasília (DF)
Na capital federal, a Embrapa Agroenergia tem uma unidade especializada em inovações para produção de bioprodutos e biocombustíveis, em uma área de 3 mil metros quadrados.

2- Goiânia (GO)
Centro de Excelência em Inteligência Artificial (Ceia), da Universidade Federal de Goiás (UFG), em Goiânia, já atraiu investimento de R$ 70 milhões em projetos de inovação e conta com 380 pesquisadores de IA.

3- Rio Verde (GO)
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano (IF Goiano), ligado ao Ministério da Educação, desenvolve soluções inteligentes para o agronegócio, em Rio Verde.

4- Três Lagoas (MS)
Instituto Senai de Inovação (ISI) Biomassa, em Três Lagoas (MS), realiza pesquisas para desenvolvimento de produtos e serviços que envolvem a transformação de biomassa, para agregar valor às commodities e biomassa residual.

SOLO FÉRTIL
As tecnologias que geram mais projetos* na região Centro-Oeste

Fonte: Embrapi — Foto: Época NEGÓCIOS
Fonte: Embrapi — Foto: Época NEGÓCIOS

DEMANDA LOCAL
Projetos de base tecnológica* oriundos da Região Centro-Oeste nos últimos 10 anos

– 122 projetos apoiados
– 52 projetos concluídos
– R$ 145 milhões investidos

* Projetos realizados com apoio da Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação industrial)

Fonte: Épocs Negócios