Doenças são usadas pelo Estado e pelo latifúndio para arrancar os Povos Indígenas de seus territórios

por Jornalistas Livres

Por Julio Zelic, especial para os Jornalistas Livres

Vivemos em um tempo tenebroso. O presidente Jair Bolsonaro, sem nenhum peso na consciência, ataca abertamente os povos indígenas. Em janeiro de 2020, por exemplo, Bolsonaro disse durante uma live em suas redes sociais que “Com toda certeza, o índio mudou. Está evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós” [2]. Em diversas outras ocasiões ao longo de sua carreira como deputado e, agora, como presidente, Bolsonaro proferiu discursos contra a demarcação de terras indígenas. Luiz Antonio Nabhan Garcia, secretário fundiário de Bolsonaro, disse, em novembro de 2019, que Hoje, o maior latifundiário do país é o índio” [3] e, durante a pandemia, articulou uma instrução normativa com a FUNAI que facilita o roubo das terras indígenas.

São tantas mentiras e imposturas racistas de Bolsonaro e seus aliados a respeito dos povos indígenas, que não é preciso pensar duas vezes antes de desconfiar de qualquer ação ou omissão do governo.

A “gripezinha” como minimizou o Presidente, nesta quarta-feira (13/5), já ultrapassou as 12 mil mortes[4] em todo o País. O amparo do governo não é suficiente, e a economia, posta acima de tudo, está trazendo a sombra do medo e a morte para cima de todos.

Para os povos indígenas, as consequências da pandemia se agravam ainda mais.

A FUNAI (Fundação Nacional do Índio), hoje presidida pelo delegado da PF Marcelo Augusto Xavier da Silva, que atuou na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da FUNAI, em 2016, como assessor da bancada ruralista, não está dando mínima assistência ou direito à saúde para os indígenas. Não atua para restringir o contato, para proteger a terra, para expulsar os garimpeiros ilegais que transmitem a doença para os índios. Quanto aos casos, hoje, conforme os dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), no site “quarentena indígena” já temos a presença do vírus em ao menos 34 aldeias. São 308 contaminados e 77 mortos[5]. Sem contar toda a subnotificação, sabidamente imensa, já que o Brasil é dos países que menos testes tem feito para a doença.

É importante reparar que, se em 308 casos conhecidos da Covid-19 entre indígenas, registraram-se 77 óbitos, a probabilidade de o índio morrer ao apresentar sintomas é de 25%, enquanto, no Brasil como um todo, essa porcentagem está, hoje, em aproximadamente 7%. Temos portanto uma taxa de mortalidade entre os indígenas mais do que três vezes maior do que a taxa de mortalidade do País. Obviamente, essa situação reforçaria ainda mais a necessidade de ajuda, de tratamento, de EPI’s, de fiscalização. Mas o Estado está ausente, quando o assunto é salvar os povos indígenas de uma doença que não lhes pertence.

É trágica a constatação de que esta pandemia ainda irá longe, e que muitos indígenas morrerão por omissão criminosa do governo e do órgão que lhes deveria proteger. Segundo o censo de 2010, temos 800 mil índios no Brasil. Se seguirmos a projeção do Bolsonaro, segundo a qual, 70% da população irá se contaminar, e levando em conta uma porcentagem de 80% de assintomáticos[6] (que ainda não sabemos como se aplica aos índios por não existirem pesquisas a respeito), teríamos 112 mil remanescentes dos Povos Originários apresentando sintomas que podem requerer atendimento hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória. Desses, a prosseguir o alarmante índice de 25% de mortalidade, 28 mil perecerão até o fim da pandemia.

Que isso não aconteça de novo em nosso país.

Vivemos em um tempo de medo e desestruturação no mundo inteiro, convivendo com uma pandemia que ameaça nossa existência e o modo de vida em sociedade. Esta sensação que temos agora já foi sentida pelos brancos há 100 anos, durante outra pandemia que ficou conhecida como Gripe Espanhola. Fato tão distante no tempo mostra quão extraordinário para a Sociedade Nacional é esse medo, essa angústia de adoecer, de ter a morte à espreita, essa incerteza sobre o amanhã de nossa gente.

Porém, quando olhamos para os povos indígenas, para as culturas e as pessoas tornadas invisíveis pelo mundo do Capital e da especulação, a realidade é muito diferente: doenças e morte são um perigo constante.

Ao ler diversos documentos históricos, arquivados no site Armazém Memória (aberto a todos), tive a oportunidade de perceber a luta que os povos indígenas travam para sobreviver em meio a uma sociedade que lhes fecha as portas da saúde e dos cuidados. Para além disso, pude encarar a perversão do Estado e da classe dominante quanto ao adoecimento nas aldeias: utilizam-se da fragilidade decorrente das doenças como ferramenta para tomar posse das terras, para expansão de latifúndios, para extração de minérios, para o desmatamento e comércio de madeira, para tudo que gere lucro independentemente das vidas que se perdem no meio dessa exploração desenfreada.

Estado genocida

Não podemos compreender as doenças que assolam os povos indígenas sem fazer paralelo com as ações do Estado brasileiro. Portanto, usaremos como referência os registros nos Anais do Congresso Nacional, que são documentos importantes para entendermos esta relação: Estado/Povos Indígenas/Epidemias.

O primeiro ponto notável, antes mesmo de apresentar documentos, é o descaso dos deputados diante das questões indígenas. Podemos ver que a quantidade de discursos no Congresso sobre epidemia em povos indígenas, entre os anos de 1946 e 1996, ou seja, num intervalo de 50 anos, não atingiu a marca de 30, e muitos desses discursos apareceram apenas como uma citação no Dia do Índio, soando como um descarrego de má consciência, depois de terem ignorado as pautas indígenas durante o ano todo."Funai liquidará com os índios" - Reprodução "Jornal do Brasil":

Reprodução “Jornal do Brasil”

discurso do deputado Marcos Freire[7], em maio de 1972, apresenta acusações graves à FUNAI, que mesmo sendo um órgão do governo cuja função é ajudar os povos indígenas, tem sido, ao longo da história, incapaz, incompetente e inepta no cumprimento de seu papel. Marcos Freire, após as denúncias contra a FUNAI, anexa a seu discurso uma reportagem publicada no “Jornal do Brasil” a respeito da renúncia de Antônio Cotrim a seu cargo na Funai. Destacarei aqui alguns trechos da notícia:

“Sertanista Antônio Cotrim abandona FUNAI para não ser um “coveiro de índios”

(Antônio Cotrim) “Afirma que não pretende continuar sendo instrumento de um órgão que é um “blefe à opinião pública” nem colocar em prática uma política indígena errada, pois não procura conciliar os interesses de desenvolvimento da sociedade nacional com a proteção das sociedades primitivas.”(…)

(…) Antônio Cotrim: “Quando estava entre os kubekrametis, em junho, foi avisado pela FUNAI que havia epidemia de gripe entre os jandeavis, transmitida durante a passagem pela aldeia da missão do Padre Antônio Carlos, da Prelazia do Xingu. Dos 76 índios, morreram 16.

O sertanista pediu medicamentos à FUNAI, mas eles só chegaram 48 dias depois e em quantidade insuficiente. Essa falta de assistência acabou por revoltá-lo ao ponto de se decidir pela demissão em caráter irrevogável.”(…)

(…) A morte de mais de 40 parakanãs, além de cegueira em oito, causadas por doenças venéreas transmitidas pelos próprios funcionários da fundação, é relacionada por ele como uma das razões que o está levando a se afastar do órgão.”

A partir deste documento podemos perceber em primeiro lugar a falta de amparo da FUNAI aos povos indígenas. Além disso, vemos também, que nestes casos citados, como em muitos outros, foi o contato dos brancos com os índios que trouxe doenças. É importante ressaltar que as doenças chegam, mas os medicamentos não.

Sobre o caso dos Parakanã, citado por Antônio Cotrim, temos ainda no discurso da deputada Lúcia Viveiros, em outubro de 1979[8], um anexo que prova a reincidência do erro descrito por Cotrim. Novamente representantes da FUNAI levando doença aos Parakanã. Toda repercussão do escândalo denunciado pelo sertanista não foi suficiente para a FUNAI rever sua conduta:

“1976: Uma frente de atração da FUNAI efetua contato com o grupo de Parakanã, junto ao Rio Anapu nas proximidades de Altamira. A situação de saúde dos componentes da equipe de atração, logo antes do contato, era bastante precária (malária e gripe) sem alimentação adequada e apoio suficiente.

A equipe não optou pelo retorno, como era de esperar, mas permaneceu até o encontro final.

O resultado foi que, logo depois do encontro, 11 índios morreram de malária e a equipe voltou às pressas impondo aos índios uma transferência e contato violentos com a “civilização”, em condições completamente diferentes dos próprios padrões culturais.

O grupo Parakanã do Lontra é transferido, pela 4.ª vez, para o atual aldeamento junto ao PI (Posto Indígena) da FUNAI chefiado nesta época por um enfermeiro. Além da mudança de aldeia, neste período várias transformações culturais são impostas ao grupo”

Seguimos com a oportunidade que este documento nos traz de refletir sobre o quinto parágrafo do artigo 231 da Constituição[9]:

“§ 5º É VEDADA A REMOÇÃO DOS GRUPOS INDÍGENAS DE SUAS TERRAS, SALVO, “AD REFERENDUM” DO CONGRESSO NACIONAL, EM CASO DE CATÁSTROFE OU EPIDEMIA QUE PONHA EM RISCO SUA POPULAÇÃO, OU NO INTERESSE DA SOBERANIA DO PAÍS, APÓS DELIBERAÇÃO DO CONGRESSO NACIONAL, GARANTIDO, EM QUALQUER HIPÓTESE, O RETORNO IMEDIATO LOGO QUE CESSE O RISCO.”

Esta lei é uma ferramenta que pode ser utilizada de forma positiva ou negativa, pois permite a remoção de povos indígenas de suas terras em casos de epidemia (entre outros casos descritos no parágrafo). Podemos pensar de maneira positiva quando a remoção dos índios de sua terra visa aos cuidados de sua saúde. Seguindo a lei, após cessados os riscos, os índios deveriam retornar imediatamente para sua terra. Porém, as eventuais boas intenções dos constituintes não impediram a malversação da lei, que se tornou então uma ferramenta a serviço da expulsão dos índios de seus territórios. Como vimos no caso dos Parakanã, o Estado leva a doença e em seguida tira de forma forçada o povo de sua aldeia, pouco se importando com a cultura e o sagrado que ficam na terra em que eles habitam. Ao longo da história, os Parakanã foram remanejados diversas vezes, sempre por conta de algum interesse capitalista. Não por coincidência, este povo tem sua história pontuada pela doença, peste e sofrimento.

Em abril de 1979 o deputado Heitor Alencar Furtado proferiu um discurso muito forte[10], embasando, ainda mais, a denúncia ao Estado que fazemos neste texto.

“Para desalojar tribos indígenas e tomar-lhes a terra, no processo de ocupação que se desenvolveu ao longo da História, o branco sempre se utilizou de métodos desumanos, na maioria das vezes com a conivência das autoridades governamentais. Conta o sertanista Villas-Boas que, no período de construção da Estrada de Ferro Noroeste, os índios durante a noite desmanchavam o que era feito durante o dia. Houve, então, quem sugerisse e, pior, quem pusesse em prática a violência numa de suas formas mais cruéis. Algumas camisas contaminadas com o vírus do tifo foram deixadas junto à estrada. Ocorreu então uma epidemia devastadora e milhares de índios morreram. Quem pagou, ou quem pagará por essas vidas? A quem responsabilizar por estes crimes, senão a uma administração falha e omissa?”

Neste documento podemos ver que para além da incapacidade do governo de cuidar dos povos indígenas, o Estado é conivente com a violência do setor privado contra os povos, cujo objetivo é roubar as riquezas e as suas terras. Vemos também que as doenças foram utilizadas como ferramenta para fragilizar a luta indígena contra a grilagem de suas terras. De tal forma, doenças tornaram-se armas letais que se fingem como um infortúnio, uma fatalidade, mas que escancaram que o governo, além de omisso, é também cúmplice da maldade genocida dos capitalistas, pois não julga os crimes dos invasores e nem sequer presta socorro aos índios adoecidos.

É preciso respeitar a Constituição e os direitos dos povos indígenas, garantir-lhes o direito à terra, cultura, saúde e à vida. É nosso dever participar da luta dos povos originários para devolver o que lhes pertence por direito inalienável.

[1] Indígena em Manaus, durante pandemia de Covid-19 | Alex Pazuello/Prefeitura de Manaus

https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/direto-do-confinamento-salvem-os-indios

[2]https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/24/cada-vez-mais-o-indio-e-um-ser-humano-igual-a-nos-diz-bolsonaro-em-transmissao-nas-redes-sociais.ghtml

[3] https://exame.abril.com.br/brasil/hoje-o-maior-latifundiario-do-pais-e-o-indio-diz-secretario/

[4] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/12/casos-de-coronavirus-e-numero-de-mortes-no-brasil-em-12-de-maio.ghtml

[5] https://quarentenaindigena.info/casos-indigenas/

[6] https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca

[7] para ver o discurso completo acesse o Centro de Referência Virtual Indígena: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocIndio/120583

[8] para ver o discurso completo acesse o Centro de Referência Virtual Indígena: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocIndio/121005

[9]Quadro histórico dos dispositivos Constitucionais – Artigo 231 CEDI – Câmara dos Deputados

http://www.docvirt.com/docreader.net/LegIndio/1642

[10] para ver o discurso completo acesse o Centro de Referência Virtual Indígena:

http://www.docvirt.com/docreader.net/DocIndio/120963