por Eliara Santana*
“É hora de perdoar o PT” é o título da coluna do jornalista Ascânio Seleme, no jornal O Globo do dia 11-07.
A complementação é por minha conta. Em linhas gerais, o artigo afirma que é hora de perdoar o PT, que o país tem 30% de eleitores de esquerda, que o bolsonarismo é o inimigo, que a nação não se reencontra se uma parcela da população for rejeitada, que o PT é o agrupamento político mais forte e sustentável da história partidária brasileira etc. etc.
O artigo-editorial tem pontos deveras interessantes, para muito além da proposta original exposta no título.
Ele não é uma peça de cunho religioso com o perdão pelo perdão. Ele é uma peça política que enseja um chamado à negociação.
Vou destacar alguns comentários da ordem do discurso e, depois, alguns pitacos mais gerais do significado desse artigo.
1 “É hora de perdoar o PT”
O título recupera a antiga concepção dos cidadãos de bem – honrados e não corruptos – e faz a eles esse apelo.
Estabelece portanto que um agrupamento X tem a prerrogativa de perdoar e de decidir o momento de fazê-lo. Somente os bons e corretos podem fazer isso. Somente os “cidadãos de bem”. E o momento justifica.
2 “Esse agrupamento político, talvez o mais forte e sustentável da história partidária brasileira, tem de ser readmitido no debate nacional. Passou da hora de os petistas serem reintegrados”
Há uma referência explícita a qualidades do outrora inimigo, como a justificar o perdão. O que também evidencia a estratégia de seduzir o então inimigo para que aceite a oferta de perdão.
Há ainda uma marcação temporal importante que remete ao estado de coisas atual como justificativa para esse passo (o perdão).
3 “A gritariacontra a roubalheira já cansou, não porque se queira permitir roubalheiras, mas porque é oportunista politicamente. Claro que houve desvios de dinheiro público na gestão de Lula e Dilma, as provas são abundantes e as condenações não deixam dúvidas. Mas o PT é maior que isso e, como já foi dito, para ladrões existe a lei”.
O aceno de paz deve ser sedutor, com doses de bajulação, e envolve esquecer o passado, de parte a parte.
Portanto, para selar a paz e pensar no inimigo comum, do lado de lá oferecem o fim do repertório “corrupção” atrelado ao PT e joga luz em suas qualidades.
Liga a corrupção a gestões específicas e marcantes (Lula e Dilma), mas não aos atores – houve desvios nas gestões, não há um agente explícito. Esqueçamos Atibaia e o Guarujá.
Isso é importante porque revela que compreendem a dimensão de Lula e de Dilma no PT – portanto sabem que o aceno de paz nem será discutido se eles forem preteridos.
4 “O petismo não é sinônimo de roubo, como o malufismo”.
Desde o começo, os que arquitetaram o golpe sabiam que o PT não inaugurou a corrupção no Brasil. Mas esse repertório foi utilíssimo naquele momento. Agora não é mais.
5 “O fato é que o ódio dirigido ao PT não faz mais sentido e precisa ser reconsiderado se o país quiser mesmo seguir o seu destino de nação soberana, democrática e tolerante”.
É de se perguntar se esse “ódio” já fez sentido algum dia, então. Em algum momento oportuno era aceitável odiar o PT.
Hoje, diante do caos pandêmico e da força que o partido demonstra, apesar de tudo, não mais.
6 “O Brasil não tem tempo para esperar por uma outra esquerda, renovada e livre da influência do PT. O país precisa se reencontrar logo para construir uma alternativa ao bolsonarismo, este sim um problema grave que deve ser enfrentado por todos”.
O problema é nomeado e ganha predicados. E só alguém forte pode enfrentá-lo. Então, eis o ponto: descobriram que não dá para prescindir do maior partido de esquerda da América Latina para destruir a praga que está solapando as bases da vida nacional.
7 O artigo não fala em mea culpa do PT, elenca sua culpa, sua máxima culpa, mas não exige isso que vem sendo quase um mantra mídiatico. Passado é passado…
8 “Falo dos eleitores, não apenas dos militantes. Me refiro aos que acreditam na política de mudança do partido, não aos seus líderes”.
Pela primeira vez na imprensa há uma referência positiva a quem vota e escolhe uma proposta de esquerda.
Não são mais os “militantes” – termo que sempre ganhou conotação negativa até evoluir para “militontos” em algumas paragens. Há a percepção explicitada de que o partido tem uma política de mudança e que há pessoas que acreditam nela.
Feitas as rápidas observações sobre o texto, agora eu quero pensar nessa tessitura do discurso, nesse caminho de significação para além da ode ao PT.
O que sinaliza, no cenário macropolítico pandêmico descontrolado, esse artigo? Sinaliza, entre outras coisas importantes, um relevante aceno de paz.
Alguns pitacos:
1 Os sinais de fumaça da paz começaram já no início da semana, com a entrevista do ex-candidato à Presidência da República pelo PT, Fernando Haddad no programa Roda Viva, da TV Cultura.
Não pela entrevista em si, mas pela não virulência na condução do processo. Não houve interrogatório, a santa inquisição contra o monstro da corrupção. Houve uma entrevista, com espaço para Haddad falar mal até de Ciro e de FHC.
No JN, o assunto “contas bloqueadas do PT pelo WhatsApp” não rendeu – apenas uma nota informativa, cabendo até leitura da explicação de Gleisi Hoffman.
2 Chegaram à conclusão de que criaram corvos, abutres que estão agora a comer os olhos de todos os golpistas, que odeiam o PT, mas não querem um país cheio de praia e riqueza governado pelo Talibã.
3 Aponta um aceno em direção à paz para combater um inimigo comum, que é forte e descontrolado.
E aqui, minha gente, não significa que as Organizações Globo são legais nem que o PT é um tolo nem que essa que vos fala ama o Bonner.
Significa que há um jogo político em que o ator que tem poder institucional de comando no momento representa um gigantesco retrocesso, com impacto forte verificado naquela parte sensível do capitalismo – o lucro.
4 As Organizações Globo – e a imprensa neoliberal em geral – estão fragilizadas num governo que é um mix de Talibã com ogros.
Os neoliberais não gostam do combate à desigualdade nem de negros nas universidades, mas acreditam na ciência e sabem que a Terra é redonda.
5 O altíssimo potencial destrutivo de Jair e sua trupe está escancarado. Bem como a impossibilidade de controlá-lo.
Tentaram de todas as formas (até atenuando nas últimas semanas a cobertura), mas não foi possível. Ele até passou a usar máscara, mas só isso.
6 Jair nunca foi o candidato da imprensa neoliberal refinada. Ele foi o possível para fazer frente a uma vitória da esquerda. E pensavam que ele seria controlável. Perceberam que não é.
7 Como sinalizou o cientista político Alberto Carlos Almeida, perceberam que Jair vai até 2022 e que o PT será seu adversário.
Daí aquele elogio pra seduzir o único grupo que tem condições de enfrentar o monstro: “Esse agrupamento político, talvez o mais forte e sustentável da história partidária brasileira, tem que ser readmitido no debate nacional”.
8 O artigo-editorial é um instrumento político de negociação e de chamamento à paz.
E acho que é muito positivo para o Partido dos Trabalhadores porque reconhece, sem escancarar, claro, sua força política, sua capilaridade, sua capacidade de organização, sua resiliência. Enfim, reconhece sua capacidade de vencer os monstros.
9 Por fim, o artigo-editorial traz o reconhecimento dos grupos que mandam que a criminalização da Política não foi uma boa estratégia para banir do poder aqueles que são contrários às políticas neoliberais, pois os ogros podem estar à espreita.
10 Jair ameaça clara e abertamente cassar a concessão da Globo, que vence em 2022. O PT, mesmo espezinhado, nunca fez isso
Por isso, não se assustem se de repente um sapo barbudo for chamado para alguma entrevista…
*Eliara Santana é jornalista e doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.
Fonte: Viomundo