Professor quilombola Luiz Kentu defende que ensinar os saberes tradicionais na sala de aula é um meio de ajudar a preservar o meio ambiente e a diversidade cultural do Brasil
Do mar, a série de reportagens sobre o educar tradicional volta para as matas. Desta vez, para o interior paulista, em uma região reconhecida pela sua diversidade socioambiental: o Vale do Ribeira. É lá, no extremo sul do estado de São Paulo, que está a maior porção remanescente de Mata Atlântica, com pelo menos 21% do bioma original preservado. Esta conservação da vegetação, da biodiversidade e das nascentes d’água do Vale do Ribeira não é um acaso: ela ocorre justamente porque a região abriga a maior concentração de comunidades quilombolas do estado. São eles e suas práticas tradicionais de manejo da natureza que ajudam a manter a Mata Atlântica em pé.
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Historicamente, os quilombos nasceram como espaços de resistência e liberdade onde pessoas negras escravizadas que fugiam se abrigavam, sobretudo entre os séculos 16 e 19. No entanto, foi somente em 1988, cem anos depois da abolição da escravidão, que a Constituição Federal reconheceu esses espaços como comunidades remanescentes de quilombos e garantiu aos seus habitantes a regularização de suas terras.
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Nesse contexto, a educação sempre foi e continua sendo um ato de resistência da identidade, das tradições e dos saberes da cultura negra. “A educação se constitui na base do processo de luta e resistência pelo território, que é um dos fatores principais da nossa existência enquanto comunidade quilombola. Pela educação defendemos o território coletivo, os modos de vida, a sociabilidade, o meio ambiente, os modos de produção e os saberes ancestrais”, conta o professor quilombola Luiz Marcos de França Dias, o Luiz Kentu, que compartilha sua trajetória na educação nesta reportagem.
Luiz vive no Quilombo de São Pedro, uma comunidade localizada entre os municípios de Eldorado e Iporanga, na margem esquerda do rio Ribeira do Iguape. Ele é da família de Bernardo Furquim, que fundou o quilombo em torno do ano de 1833. As populações descendentes de pessoas escravizadas mantiveram seus laços de parentesco nesses territórios e lá preservam seu modo de vida, de luta e de roçado.
“Eu sou a quinta ou sexta geração dos fundadores da comunidade, que foram Bernardo Furquim e Rosa Machado. Ambos vieram de Minas Gerais, acabaram se estabelecendo por aqui e criando familiares pela região. Se a gente for observar os laços de parentesco, eles são muito estreitos entre todos os quilombos, como São Pedro, Galvão, André Lopes, Nhunguara, Sapatu e Ivaporunduva. É uma relação próxima de pertencimento, de parentesco. É fácil perceber, porque o sobrenome se repete em diversas comunidades.”
Ao todo, são 51 comunidades quilombolas reconhecidas em São Paulo e outras 34 que aguardam regularização fundiária, de acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp). Em todo o país, são ao menos 3 mil comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares, em diferentes fases de regularização.
Uma escola de histórias
Luiz leciona no Quilombo André Lopes, na Escola Estadual Maria Antonia Chules Princesa, primeira instituição de ensino quilombola do estado, inaugurada em 2001. Atualmente ela atende seis comunidades do entorno e reúne 14 professores e 170 alunos, do 6º ano do ensino fundamental ao 3º do ensino médio, segundo dados da Diretoria de Ensino de Registro, da Secretaria Estadual de Educação.
O professor nasceu e cresceu dentro da comunidade. Só saiu dela para trabalhar e cursar a universidade e, assim que pôde, retornou como professor. O período mais longo que passou fora do quilombo foi enquanto estudava Letras no município paulista de Itatiba. Do grupo de Luiz e de outros 10 colegas quilombolas aprovados com ele em vestibulares na época, poucos conseguiram completar os estudos: “Dessa turma toda, acabamos voltando somente dois com diplomas, um formado em Administração e eu, em Letras”, conta.
Hoje, leciona língua estrangeira, português e literatura para todas as turmas da escola Maria Chule. Também dá aulas de capoeira, percussão e danças com cirandas, coco e samba de roda como voluntário em um projeto no quilombo São Pedro. “O fato de eu ter optado por trabalhar com educação está relacionado diretamente com a possibilidade de fazer a ponte entre o mundo técnico-científico e a comunidade, transformando isso para a linguagem comunitária e local”, diz.
Neste ano, Luiz propôs na escola uma disciplina optativa chamada “Saberes Ancestrais Quilombolas”, voltada aos alunos de ensino médio. Devido à pandemia do novo coronavírus, ela está suspensa. Porém, o programa abordaria diversos pontos da cultura quilombola, em especial a roça coivara.
Trata-se de um modo tradicional de cultivo de alimentos, no qual se limpa a área de plantio com fogo controlado. Depois da colheita, há uma rotação de áreas, para que haja tempo de recuperação da mata nativa. Esse modelo de produção agrícola foi reconhecido como patrimônio cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Os pais dos alunos aprovam o modelo de aulas proposto por Luiz, com conteúdo focadas em discutir e debater a cultura e o território quilombola. Um deles é Elson Alves, pai de um aluno de Luiz do ensino médio, diretor escolar e especialista em educação quilombola. “Com ele estudando perto de casa, entre seus pares, não sofre bullying ou qualquer tipo de discriminação racial. E temos as comunidades participando e opinando dentro da escola, diferentemente dos tempos em que eu estudava na cidade”, lembra.
Estrutura e currículo próprio
Se a cultura quilombola é um patrimônio brasileiro, nem sempre a estrutura das escolas tradicionais acompanha a importância dessas comunidades para o país. No Vale do Ribeira os problemas começam já na educação infantil. Ela ainda não é universalizada, o que deixa as crianças quilombolas de fora daquela que é considerada a etapa mais importante da educação.
Além disso, as escolas sofrem com problemas de infraestrutura. Na que Luiz leciona, por exemplo, não há internet disponível para os alunos, nem computadores, que foram roubados há dois anos e ainda não repostos. Os professores contam apenas com um projetor para as aulas.
O problema não é uma particularidade das comunidades quilombolas: nas áreas rurais do Brasil apenas 18% das escolas têm laboratório de informática e 34%, acesso à internet. Nas zonas urbanas, esses percentuais chegam a 51% e 89%, respectivamente, segundo o Censo Escolar de 2019.
Outro desafio é o currículo. As escolas quilombolas de São Paulo não possuem um currículo próprio. Com isso, o ensino da cultura tradicional em sala de aula acaba dependendo da iniciativa de cada professor. Mas isso nem sempre ocorre, sobretudo quando os professores vêm de fora da comunidade.
“Muitas vezes acontece o seguinte: as professoras que vêm dar aula nos quilombos são da cidade, do município de Eldorado, mas elas acabam vindo como a última opção (deles). É importante que a pessoa que venha trabalhar nos quilombos tenha uma noção do que é este território. Todos os alunos da minha sala são crianças negras e já aconteceu de a professora trazer um desenho que não tinha nada a ver com a representatividade delas”, conta a professora Viviane Marinho, que é doutora em Educação e dá aulas em uma escola no Quilombo de Ivaporanduva.
Para dar conta dessas lacunas, professores quilombolas do Vale do Ribeira se mobilizaram para produzir um livro próprio para ser trabalhado na sala de aula. Chamado “Roça é Vida”, o livro mostra técnicas de plantio tradicional, manejo de ervas e conhecimento de parteiras das comunidades. No Brasil, apenas 30,3% das escolas quilombolas contam com material didático específico, segundo o Anuário da Educação Básica de 2019.
“O papel da escola é de interlocução entre os saberes tradicionais dos quilombos e os saberes universais do currículo escolar. O que nós não concordamos é que a educação escolar quilombola apenas trate dos saberes universais e não aborde a cultura, as organizações e as lutas locais. Esses são elementos importantes que a escola não pode deixar de mediar”, defende a especialista em educação quilombola Givânia Silva, integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
De acordo com a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, as escolas que atendem o público quilombola têm autonomia para adaptar seus currículos e calendários de acordo com as particularidades de cada região. Atualmente, são 955 alunos dessas comunidades em São Paulo, sendo que 178 deles estudam em escolas tradicionais. São também 30 professores atuando em escolas quilombolas estaduais.
Lei sem aplicação
O principal documento norteador do ensino nas comunidades são as Diretrizes para Educação Escolar Quilombola, aprovadas pelo Congresso Nacional em 2012. Elas definem uma série de princípios para as escolas das comunidades, como o trabalho com a memória coletiva, o resgate das línguas remanescentes, as formas próprias de trabalho, a história oral e os festejos das comunidades, elementos que foram patrimônio cultural desses povos.
“Os saberes tradicionais não podem ser um acessório na educação quilombola. Eles são parte do conteúdo dessa educação. Se eu tivesse que fazer uma lista aqui [de características próprias de educação quilombola] ela seria uma lista enorme, mas eu ficaria com a relação com o território, sua organização e os saberes tradicionais, que estão com as mulheres e as pessoas mais velhas”, diz Givânia.
Antes das diretrizes para educação quilombola, havia sido aprovada, em 2003, a lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana no currículo da educação básica. “Assim, em tese nosso problema estaria resolvido. A questão é que no Brasil temos muita dificuldade não com as legislações, mas com sua implementação. As diretrizes entendem que, sem levar em consideração as especificidades dos quilombos, haveria um processo de apagamento que dificultaria a vida dos quilombos. Tensionamos tanto que elas foram aprovadas”, lembra a especialista.
E o que Luiz espera da escola e do futuro de seus alunos? “Que esse processo fortaleça ainda mais as comunidades tradicionais, não só quilombolas, mas as indígenas e todas as demais, para defender os direitos desses povos e comunidades. Defender a educação tradicional é também defender a Amazônia, a Mata Atlântica e a diversidade cultural do nosso país”, diz o professor. “Que cada aluno saia da escola sabendo reconhecer o que é citologia (ramo da biologia), mas também sabendo pensar e refletir sobre o processo histórico do Vale do Ribeira e dos seus quilombolas.”
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