Eles vibram com alegria juvenil, mas amadurecer na cena artística tem pesos diferentes para homens e mulheres
Aos 98 anos, festejados em 14 de novembro, o cantor e compositor baiano Riachão (cujo nome é Clementino Rodrigues) causou espécie recentemente ao revelar planos para o futuro. Ele deve lançar, no ano que vem, o disco Se Deus Quiser Eu Vou Chegar aos 100, com repertório inédito (possui centenas de composições na memória, nunca registradas). Seu álbum mais recente foi Mundão de Ouro, de 2013, no qual cantava, com brejeirice característica, em Meu Dia Vem Aí: Meu amigo já se foi/ eu me lembro que nós dois/ só vivia a cantar.
A longevidade artística de Riachão revela mais do que uma demonstração de tenacidade intelectual. Tornou-se também uma necessidade orgânica, física, como ele contou em entrevista a CartaCapital. “A minha vida é cantar, a música é a minha alegria. Se não fosse a música, eu estava pior”, afirmou o cantor. “Eu canto ainda, mas estou sem poder sambar. O corpo é só dores, tudo é sofrimento”, confidenciou o compositor dos clássicos Cada Macaco no Seu Galho, gravado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, e Vá Morar com o Diabo, sucesso de Cássia Eller.
Viver muito em constante atividade criativa é uma equação que parece pedir mais um tipo de resolução interna do que externa, algo que extrapola as questões da potência física. “Cara, só posso agradecer essas alegrias que a vida continua me dando”, festejou, como se fosse um novato, o compositor e produtor capixaba Roberto Menescal, aos 82 anos, após receber o anúncio de que uma composição sua, Canção para Lhe Encontrar (em parceria com o cearense Dalwton Moura) ganhara no início do mês o II Festival de Música de Fortaleza. Menescal e Moura, de 32 anos, compuseram especialmente para o jovem intérprete Marcos Lessa, de 28 anos. A alegria juvenil de Menescal espanta por causa do seu currículo: um dos fundadores da bossa nova, é compositor de O Barquinho, Você, Nós e o Mar, Rio e Ah, Se Eu Pudesse, entre outros clássicos, e teve como intérpretes de suas músicas (ou acompanhou como instrumentista) gente como Nara Leão, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Maysa e Elis Regina.
Consagrado e eternizado por suas façanhas, Menescal não perdeu nem por um minuto a capacidade de se deixar arrebatar pelo inesperado, pelo novo. “Amigo, lhe confesso que fiz essa música com um novo parceiro sem rumo premeditado”, disse, acrescentando que vê o jovem cantor Marcos Lessa como herdeiro de Emílio Santiago. “Um dia, Dawlton me perguntou se poderia inscrever nossa música no Festival de Fortaleza, no qual concorriam compositores do Brasil inteiro. Respondi que sim e, em seguida, viajei para Portugal e Londres”, contou. Quando voltou de viagem, havia uma mensagem eufórica gravada no seu celular: “Ganhamos!”
Um dos fundadores da bossa nova, Roberto Menescal ainda vibra com alegria juvenil
“A realidade é um fetiche. Você olha pra ela, pensa que está entendendo, e ela está escondendo aquilo que você realmente deveria entender”, teorizou o cineasta João Batista de Andrade, 80 anos completados há poucos dias. Por isso, quando era um jovem mineiro de Ituiutaba recém-chegado em São Paulo, Andrade mergulhou num negócio que chamava de “cinema de intervenção”, um conceito de documentário no qual o diretor cria algumas situações para quebrar o conceito de imparcialidade e fazer uma interpretação da realidade.
Mais de 50 anos depois daquele começo, o festejado realizador de O Homem Que Virou Suco (1981) e O País dos Tenentes (1987) celebrou seus 80 anos sob aplausos de uma sala lotada no Fest Aruanda, festival de cinema na Paraíba. Com 17 longas-metragens no currículo, além de passagens pela Secretaria de Cultura de São Paulo e Ministério da Cultura, João Batista de Andrade poderia já ter amarrado os burros na sombra, como diz o ditado, mas demonstra estar longe dessa disposição: na quinta 12, ele lançou em São Paulo um novo romance, O Manuscrito do Jovem Gabriel (Editora Reformatório, 184 páginas, 40 reais), o nono livro que publica. O desenho de capa é um esboço que Andrade fez em 1964, logo após o golpe militar.
JOÃO BATISTA DE ANDRADE E JEAN-CLAUDE BERNADET
Há 52 anos, Andrade teve seu primeiro filme, Liberdade de Imprensa, proibido de exibição no Brasil pela ditadura. Em 1967, levou o filme a Leipzig, na Alemanha, mas lá também não quiseram mostrá-lo, por pressão do governo brasileiro. Perambulou por Paris, depois Londres, e lá encontrou Vladimir Herzog e Fernando Pacheco Jordão. Eles o repatriaram para compor o grupo que faria o telejornalismo da TV Cultura. “É uma trajetória maluca. Aquele filme nunca foi liberado. Era muito pobre, tinha qualidade técnica problemática, mas muito forte, muito político. E, segundo o pessoal, inovador”, analisou.
A questão da coerência política e estética solidificou a obra com a reputação do seu autor. O documentarista Vladimir Carvalho, de 84 anos, ganhou o Festival de Brasília há 50 anos com A Bolandeira, também proibido pela ditadura. Desde então, fez filmes de importância crucial para a cinematografia brasileira, como O País de São Saruê (1971) e O Evangelho Segundo Teotônio (1984). Nunca teve pausas: neste ano, lançou seu novo longa documental, Giocondo, uma cinebiografia do líder comunista baiano Giocondo Dias, parceiro de Carlos Marighella. “Os temas do Brasil estão aí para serem abordados, não há assunto interditado à verdade”, afirmou. Professor da Universidade de Brasília por cerca de 40 anos, foi repórter nos anos 1960 e entrevistou Pixinguinha, João da Baiana e Donga, e esse olhar investigativo nunca o abandonou.
VLADIMIR CARVALHO, 84 ANOS, E GLORINHA GADELHA (NA FOTO), 72 ANOS, REAVIVAM A MEMÓRIA DA NAÇÃO
O roteirista, crítico, ensaísta, teórico, e romancista belgo-brasileiro Jean-Claude Bernardet, aos 83 anos, alarga sua já inestimável contribuição ao cinema nacional e experimenta uma intensa atividade no cinema como ator nos últimos anos. Na semana passada, ganhou o prêmio de melhor ator de curtas-metragens no Fest Aruanda, na Paraíba. Bernardet protagonizou o curta Nuvem Negra, dirigido por Flávio Andrade e rodado em Pernambuco, que narra a história de um personagem que, sem pronunciar uma única palavra, lida com a solidão e o isolamento. “É uma aventura do ensaísta que passou para o outro lado do balcão e não tem medo de virar vidraça. Isso é fascinante: reinventar-se em terreno tão movediço aos 80 anos não tem preço”, analisou Lúcio Vilar, diretor do Festival Aruanda.
É evidente que, para um artista veterano, o peso da luta diária para ratificar o valor poderá ter relação com a resistência física. O mesmo tempo que é brando para alguns, pode ser mais rude com outros e fazê-los, por vezes, duvidar da generosidade do meio artístico. Parece o caso do ator Tarcísio Meira, de 84 anos, um ícone das telenovelas brasileiras, antigo galã dos anos 1970 que rala cotidianamente para se garantir na profissão que o consagrou. Tarcísio Meira experimenta o crepúsculo em uma atuação, no teatro, que chama atenção por escancarar sua própria condição existencial. Trata-se da peça O Camareiro, dirigida por Ulysses Cruz. Sentado no palco (a cadeira de rodas tem sido uma constante nos últimos tempos), Tarcísio interpreta Sir, um veterano ator de teatro que esquece as falas e parece sempre à beira de uma crise nervosa. Afetado pelos mesmos problemas do personagem, como a memória falhando, a peça agora parece um exercício de metalinguagem da condição de Tarcísio, que se ressente do desinteresse pelo artista de idade avançada nas artes cênicas.
Amadurecer na cena artística tem pesos diferentes para homens e mulheres
Para as mulheres, amadurecer no métier artístico pode ser ainda mais espinhoso, já que as barreiras são mais profundas. A cantora, arranjadora e compositora Glorinha Gadelha, de 72 anos, enfrenta com dupla disposição esse muro: além de defender sua própria produção autoral, ela também é a viúva de uma figura lendária da música brasileira, o maestro, compositor, arranjador e sanfoneiro Sivuca (1930-2006), e se bate pela preservação de sua obra. Enquanto articula a construção do Memorial Sivuca, em João Pessoa, enfrenta os contratempos do descaso na cidade natal do músico, Itabaiana, e trabalha pessoalmente na escrita da biografia do músico. “Sivuca dizia que a música tinha para ele o sentido da materialização da memória”, ela contou. Glorinha cuida dos dois: da memória da lenda e da sua própria permanência artística.
*Colaborou Pedro Alexandre Sanches
Fonte: Carta Capital