Órgãos de inteligência sem controle
Do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Ação sigilosa conduzida pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública contra policiais e servidores federais expõe uma zona sombria das ações do Governo Federal. Caso é grave e precisa ser investigado pelas autoridades federais
Na última sexta-feira (24), o repórter Rubens Valente, do portal UOL, revelou ação sigilosa de inteligência conduzida pela Seopi (Secretaria de Operações Integradas), uma das cinco secretarias subordinadas ao ministro André Mendonça, e que foi criada como um desmembramento da SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública).
Nesta ação, o governo Bolsonaro monitorou 579 policiais e outros servidores da segurança pública ligados ao movimento antifascista e dois ex-titulares da SENASP e um ex-secretário Nacional de Direitos Humanos.
Se alguma suspeita de irregularidade ou ilegalidade houvesse sobre as gestões dos ex-secretários, não caberia à SEOPI investigar, mas sim à Polícia Federal, à CGU, ao TCU e ao Ministério Público.
Mas, para além disso, em sua resposta, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) cita um decreto de 2000 para se defender e justificar a ação da SEOPI.
No decreto, o órgão central do subsistema de segurança pública é a SENASP e não a SEOPI. E a SENASP é confirmada neste papel em novo decreto, o de número 9.491/2018, que reorganiza o SISBIN (Sistema Brasileiro de Inteligência), ao qual o subsistema citado pelo MJSP é vinculado e que envolve principalmente as forças policiais estaduais.
O decreto que delegou à SEOPI o papel de órgão central do subsistema de inteligência em segurança pública é o 9.661/2019, em seus artigos 29, III; e 31 IV, ainda na gestão de Sérgio Moro à frente da pasta da Justiça e Segurança Pública.
Porém, não houve alteração nos decretos originais que organizam o SISBIN e não houve nenhuma preocupação em dar transparência aos atos que regulam a atividade de inteligência (nem para dizer que certas informações serão sigilosas).
E, por ser a SEOPI uma unidade vinculada ao MJSP e não deter a prerrogativa legal de determinar o que as Unidades da Federação devem e podem fazer, a única regulamentação que daria lastro à atividade e, inclusive foi citada pelo MJSP em nota, seria o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), que o próprio Ministério informou, faz pouco mais de dois meses, que não está sendo plenamente implementado por não dispor de um sistema de governança adequado, conforme parecer da CGU.
A questão de fundo é que, nessa desarticulação formal, cria-se uma enorme zona de sombras, sem controles capazes de monitorar o que está sendo feito na área.
E é importante lembrar que, se a operação foi de segurança pública e persecução penal, competência concorrente da SEOPI e de outros órgãos do MJSP, não há sigilo na investigação exceto se decretado pelo Poder Judiciário.
Já se a operação é de inteligência de Estado, justificada nas competências atribuídas pelo SISBIN (cuja função não é ser polícia política de governos), a mesma carece de institucionalidade formal por depender da adesão voluntária das Unidades da Federação para executar suas ações.
Essa confusão, como explicou Marco Cepik, em artigo recente, “decorre justamente da precária regulamentação das operações de inteligência no Brasil, algo particularmente grave na área de segurança pública.
Em 2016, foi divulgada uma Política Nacional de Inteligência (PNI) por meio do Decreto 8.793.
No ano seguinte, um Decreto sem número de 15 de dezembro de 2017 oficializou uma Estratégia Nacional de Inteligência (ENINT).
Embora a criminalidade organizada, a corrupção e as ações contrárias ao Estado Democrático de Direito tenham sido incluídas no rol de ameaças com potencial para colocar em perigo a integridade da sociedade e a segurança nacional, nenhum dos dois documentos avança na especificação de missões prioritárias ou próprias de cada órgão do SISBIN.
Não é um mero detalhe burocrático e/ou um ato individual do gestor ou de um diretor da SEOPI.
A denúncia feita por Rubens Valente é gravíssima, pois diz respeito a uma ação de Governo, que atinge servidores públicos com fé pública e que gozam, como qualquer cidadão, de liberdade de expressão e que, em seus posicionamentos oficiais, criticam o governo mas defendem a democracia e a liberdade.
É uma ação que ocorre no limbo de regulamentação da área de inteligência.
Não há ameaças ou crime nos manifestos dos Policiais Antifascistas – podemos até discordar dos termos e das ênfases, mas jamais achar que eles não têm o direito de se manifestar.
Além disso, alcança três personalidades públicas, internacionalmente reconhecidas pela defesa da democracia, e que não cometeram nenhum crime ao defender reformas da segurança pública, promover a defesa de direitos humanos e criticar o atual governo.
São três ex-secretários que, graças às suas atuações profissionais e suas capacidades intelectuais, tornaram-se referência no debate sobre um novo modelo de segurança pública, que garanta o controle do crime, a redução da violência e a garantia de direitos humanos.
A pergunta que fica é se, ao invés de se preocupar em produzir inteligência política que claramente tem matiz ideológica e persecutória, há capacidade para a SEOPI realizar aquilo que se espera de uma unidade desta natureza, que é levantar informações sobre crime e violência; sobre facções de base prisional e milícias, por exemplo.
Pelas suspeitas levantadas, órgãos de Controle e do Sistema de Justiça, bem como a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional, precisam se debruçar sobre a legalidade e o alcance da ação.
Em suma, não apenas o Ministro André Mendonça precisa ser convocado para prestar esclarecimentos.
É preciso saber se o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), chefiado pelo General Augusto Heleno, como órgão central e coordenador do SISBIN, sabia e/ou autorizou a operação.
Qual a cadeia de comando da operação e qual o seu alcance são perguntas que precisam ser respondidas com urgência.
O presidente Bolsonaro foi informado da ação?
Em democracias, o sigilo é algo possível, desde que suas razões e implicações sejam algo que possa ser feito publicamente, com transparência e fiscalizado.
Do contrário, autonomias ganham força e colocam em risco a institucionalidade do Estado de Direito.
Uma operação como a revelada por Rubens Valente mostra que não é exagero retórico temer pelas liberdades individuais hoje no Brasil.
Fonte: Viomundo