Reestruturação interna, que afeta a participação do instituto no monitoramento da Amazônia é mais uma ação do desmonte ambiental pelo governo Bolsonaro
A política de transparência dos dados do monitoramento da Amazônia, adotada desde 2004 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), está seriamente ameaçada. Termômetro da febre do desmatamento negado pelo governo Bolsonaro, o sistema que acompanha alterações na cobertura vegetal da região por meio de satélites corre risco de ser desconfigurada ou mesmo desconstruída, a exemplo do que acontece com o conjunto da gestão ambiental desde janeiro de 2019.
“Há uma série de ações que afetam a participação do Inpe na questão ambiental. Entre elas, reduzir o número de pessoas que participam das decisões para evitar opiniões dissonantes, que divergem do que essa direção apresenta. Há uma tentativa de controle das vozes da instituição”, disse o tecnologista sênior do instituto, Antonio Miguel Vieira Monteiro, em debate promovido na quarta-feira (29) pela Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema), que representa servidores do Ibama, Instituto Chico Mendes (ICMBio) e do Ministério do Meio Ambiente.
De acordo com o servidor, há uma profunda reestruturação no órgão criado há 59 anos. “Há o extermínio de comitês de área e nem o regimento do Inpe está sendo seguido por esta gestão. E essa reestruturação, que tem verticalizado a informação e buscado narrativas de desqualificação das instituições do estado que produzem tecnologias e metodologias para o monitoramento, aponta para a desconstrução de tudo o que vem sendo construído há muito tempo. É uma tentativa de transformar uma instituição de estado em uma estrutura de gestão paralela do campo ambiental.”
Amazônia em extinção
Integrante do Conselho Técnico-Científico do INPE, Miguel afirmou que o corpo técnico da instituição sempre fez a diferença, mas hoje não tem condições de reagir a qualquer determinação vertical de paralisação e fechamento da construção da informação compartilhada com transparência, que serve principalmente ao trabalho do Ibama. “Seria um grande erro subestimar a capacidade que o atual governo tem de calar essa produção de informação e até mesmo de descontruir os sistemas de monitoramento de uma instituição que tem total credibilidade”, afirmou.
Os ataques à instituição ocorrem em meio à devastação em alta na Amazônia que tem levado investidores a pressionar o governo. De acordo com os últimos dados do Deter, um levantamento rápido de alertas de evidências de alteração da floresta do Inpe, até o último dia 15 havia 8.273 quilômetros quadrados de alerta de desmatamento. A 15 dias do fechamento do período, é registrada elevação de 21% em comparação com os 12 meses anteriores.
No debate virtual que discutiu o desmonte da gestão ambiental e o aumento do desmatamento no Brasil, o ex-coordenador geral de monitoramento e informação ambiental do Ibama George Porto Ferreira lembrou que os ataques ao órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente já estava na mira durante a campanha eleitoral. Na época, o então candidato Bolsonaro dizia em todo canto que “o Ibama é uma fábrica de multas e que isso vai acabar”. Tão logo assumiu o governo, o ministro Ricardo Salles extinguiu comitês, entre os quais o do Fundo Amazônia. “Há R$ 1,5 bilhão parado no BNDES porque não tem um comitê que avalie projetos para dar vazão a esses recursos, que poderiam estar sendo usados para combater o desmatamento.”
Em 2012, o então deputado federal Jair Bolsonaro foi multado pelo Ibama por pesca ilegal na Estação Ecológica de Tamoios, em Angra dos Reis. Um ano depois, apresentou projeto de lei para desarmar fiscais do Ibama e do ICMBio. Quando presidente, a direção do órgão disse que o crime ambiental prescreveu
Desestruturação
Outra demonstração do desmonte associado ao aumento da devastação da Amazônia, segundo George, é a redução do orçamento. “Em 2019 foi reduzido em 24% e já circula informação de que o de 2021 será 20% menor que o deste ano. Isso já demonstra a desestruturação do órgão que sempre foi protagonista no combate ao desmatamento em todos os biomas. Nos últimos três anos houve leva de aposentadorias, o que fez com que hoje se tenha metade da força de trabalho de agentes para combater o desmatamento. E não há sinal de abertura de concurso. Além disso foi limitado o número de horas extras.”
“Hoje a gente não tem autonomia para fazer o combate à derrubada da floresta. Tenho apreço aos militares, mas eles não têm o expertise e experiência do Ibama e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) na fiscalização”, ressaltou.
Ao contrário de Miguel, do Inpe, George vê a situação com certo otimismo. Acredita que o desmonte não terá o êxito que o governo espera para esconder a devastação que estimula na região. Isso porque há informações gerenciais sobre desmatamento compartilhadas gratuitamente por outros satélites, de outros países, como China, India, Estados Unidos. “Não tem como quebrar o termômetro (para esconder a febre do doente). Não vai funcionar”.
Como parar a destruição?
George, do Ibama, entende que primeiro tem de haver um plano. “Não se enfrenta um problema desses com uma carta de intenções”. É preciso também envolvimento não só dos órgãos de fiscalização, mas também do governo, para atuar na regulação fundiária, no fomento de atividades produtivas, aprimorar os regramentos e parar de dar sinais aos interessados na devastação. “Esse governo faz isso o tempo todo, como se a Amazônia fosse um quintal a ser explorado, e a terra indígena reserva de mineração ou madeira a ser explorada, e o órgão de fiscalização uma fábrica de multa a ser desmontada.”
Para Miguel, a questão envolve uma complexidade imensa e a solução não é fácil, imediata e nem rápida. “Depende de um pacto nacional, de nós brasileiros. Um compromisso com a região a partir de uma perspectiva não daqui, do sudeste, mas dos próprios amazônidas, que têm muito a dizer.”
Na sua avaliação, a economia que norteia a gestão descoordenada da região é a mesma do século 19 e 20, que propõe a regularização fundiária e a extração de minério e madeira – que está sendo chamado de ambientalismo de resultados. Além do mais, é preciso partir do governo central o desejo de pactuar uma solução para Amazônia, que envolva o pensamento de quem vive lá sobre as possibilidades econômicas. Os modelos de desenvolvimento do sudeste não vão funcionar lá.
“Infelizmente me parece impossível que haja hoje espaço para esse pacto coordenado pelo governo federal. Mas nós, como sociedade civil, cientistas, agentes do estado, temos responsabilidade com essas políticas. Não podemos deixar de falar e de construir ações que em algum momento político terão espaço institucional para se estabelecer. Temos de repensar a maneira de pensar a Amazônia, em uma estrutura de mudanças para que, em algum momento, esse desmatamento acabe e que essa população de mais de 25 milhões de pessoas desenvolva atividades econômicas e ao mesmo tempo consiga proteger essa região”.
Confira a íntegra do debate
Fonte: RBA