O problema está no consentimento. Mas quem pode dizer “não”? Muitas vezes a mulher se cala, pensando que talvez tenha se colocado naquela situação. Isso é cultura do estupro.
Por Maria Carolina Medeiros *
A Justiça italiana acaba de confirmar a condenação em segunda instância do jogador Robinho, por estupro. O crime repercutiu em toda a imprensa poucos meses atrás, com manchetes nos principais jornais e uma reportagem exibida em 18 de outubro no Fantástico sobre a chamada cultura do estupro. Na ocasião, além do caso Robinho, foi mencionado o estupro de uma mulher, por um policial, que foi à sua casa confirmar um depoimento, e o estupro coletivo sofrido por uma adolescente. Casos chocantes, sem dúvida nenhuma. Mas penso que a noção de estupro precisa ser ampliada, bem como a ideia de consentimento.
Os dados do recém-publicado Anuário de Segurança Pública 2020 dão conta do tamanho da tragédia. Se em 2015 uma mulher era estuprada a cada 15 minutos, em 2020 (de acordo com os dados de 2019), um estupro acontece a cada inacreditáveis 8 minutos. A contabilização do anuário divide os números em estupro e tentativa de estupro, que engloba mulheres e vulneráveis, casos de assédio sexual e uma terceira tabela que contabiliza denúncias de importunação sexual (que difere de assédio por não haver uma relação de subordinação da vítima em relação ao agressor). Somadas as três tabelas, estamos falando de mais de 74 mil casos em 2019. O estado líder nas denúncias de estupro e tentativa é São Paulo, com 11.684 casos, seguido pelo Paraná, com 5.174, Rio de Janeiro, que soma 4.687 denúncias por estupro, e Minas Gerais, com 4.332 casos. E claro, sabemos que existe muita subnotificação.
O próprio anuário chama a atenção para o fato de que os números se referem à “face mais visível dos crimes sexuais”, ou seja, os que são notificados às polícias. Vergonha, culpa, constrangimento e medo fazem com que muitas mulheres não denunciem. O artigo 213 do Código Penal estabelece que estupro é “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Ora, estupro não se dá apenas sob ameaça e ato de violência não é só agressão física. Existe um sem-número de violências psicológicas que impelem a mulher a se calar e não falar um claro e sonoro “não”.
É importante lembrar que estupro não é crime cometido apenas por bandidos condenados que amarram a vítima, enquanto ela se debate e berra por socorro. Um marido pode estuprar a esposa e esta se cala, silencia, porque acha que faz parte da relação conjugal “transar sem vontade”. Então não foi estupro porque ela consentiu? Uma mulher pode topar sair com um homem, estar tendo relações consentidas com ele e ser estuprada — basta que no meio do caminho ela tenha decidido que era melhor parar — e ele não parou.
O que separa a relação consensual do estupro é justamente o consentimento. Você pode topar sexo oral, mas não querer penetração. Se o homem forçar, é estupro. Você pode ter marcado no Tinder, topar algum contato físico, mas não querer ir além. Se o homem forçar sexo, mesmo que oral, sem penetração, é estupro. É considerado estupro quando um homem tira a camisinha sem o consentimento da parceira, mesmo que esta tenha consentido com o ato sexual em si.
O problema está no consentimento. Mas quem pode dizer não? Muitas vezes a mulher se cala, pensando que talvez tenha se colocado naquela situação, “quem está na chuva é pra se molhar”. Essa e outras frases como “ela estava pedindo”, ou “também, vestida assim…”, geram constrangimento e culpam a vítima, que pensa que talvez, quem sabe, tenha mesmo facilitado. Isso é cultura do estupro. É viver numa sociedade em que a mulher que topa sair com um homem não se sente no direito de mudar de ideia. Em que a esposa transa forçado porque acha que faz parte do casamento. Em que sua amiga tem que te mandar mensagem de dentro do Uber para deixar claro pro motorista que tem alguém esperando por ela. Em que você pensa duas vezes antes de sair com um vestido decotado porque quer evitar atrair olhares — e sabe-se lá mais o quê.
Tudo isso porque durante séculos de opressão entendeu-se que a mulher era propriedade do homem (taí o feminicídio que não nos deixa esquecer). O corpo da mulher é dela, de mais ninguém. Olhar nosso decote não é elogio. Dizer “não” não é charme. Não é sempre não, e pronto. O papo é longo e o caminho também. É para ajudar a trilhá-lo que existe “esse movimento feminista”, esse mesmo, Robinho, que atrapalha a vida de homens como você.
Ainda bem.
*Doutoranda em Comunicação na PUC-Rio, onde pesquisa narrativas sobre mulheres.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.