Cientista político sério não cai na armadilha de fazer projeções sobre o futuro. O erro que podemos cometer é de identificação parcial de tendências quando deixamos de enxergar uma probabilidade política

Ontem, um gaiato afirmou, no Twitter, que eu não acerto previsões. Ele acertou, já que nunca prevejo em política. Sei que lulistas ficam irritados quando avalio erros cometidos por Lula. Faz parte, como disse o filósofo Bambam. Mas, fazer tal afirmação para dizer que não faço previsões políticas corretas não chega a ser uma crítica, mas um elogio ao meu desempenho como analista. Explico.

Rudá Ricci, cientista político e presidente do Instituto Cultiva

A política é feita de imprevisibilidades porque é fruto de relações humanas e pelo acaso. Anteontem, ao cortar cabelo, tentei explicar isso para o profissional que me atendia. Aproveitei para ilustrar com a trajetória de Getúlio Vargas. Vou repetir o recurso que usei.
Vargas toma o poder em 1930. Há controvérsias se rompeu ou não com as oligarquias rurais, mas não há dúvidas que deixou as bases para o Brasil urbano e industrial. Em 1937, usando do maquiavelismo que lhe acompanhou toda a vida, implantou o Estado Novo. O líder gaúcho se utilizou do confronto entre comunistas e integralistas para criar sua própria ditadura. Fez o mesmo jogo com aliados e partidos do eixo para conseguir uns trocados e instalar grandes siderúrgicas no Brasil. Acabou caindo com o fim da 2ª Guerra Mundial e foi para o Rio Grande do Sul.
Getúlio foi para seu autoexílio em São Borja até que Samuel Wainer articulou a entrevista que o tiraria do ostracismo. Quase ostracismo, já que era senador. Wainer noticiou a volta de Getúlio Vargas. A entrevista esgotou as edições dos jornais de Chateaubriand e caiu como bomba no cenário político brasileiro.
E Getúlio retornou, de fato, ao poder. Governou o Brasil, mais uma vez, de 1951 a 1954. Seu governo, contudo, foi marcado pela permanente crise política e a tensão social. Na campanha, havia defendido a ampliação dos benefícios para os trabalhadores e a priorização da industrialização. Era muita promessa para um país combalido do pós-guerra ou mergulhado na guerra fria. A oposição da UDN foi implacável, tendo Carlos Lacerda como ponta de lança. O governador da Guanabara dizia ser preciso “recorrer à revolução para impedir Vargas de governar”.
A pressão aumentou. Vargas tentou ser mais esperto do que sempre foi (mesmo erro cometido agora por Lula, no meu entender). Embora filiado ao PTB e ter o apoio do PSD, tentou um acordo com seu rival, a UDN. Desagradou gregos e troianos e revelou fragilidade. O país e o Exército se dividiram.
O incidente da rua Toneleiros, em agosto de 1954, aceleraria a crise política que levaria Vargas ao suicídio. De um dia para outro, o presidente odiado passou a ser idolatrado. Isso é política.
Estou há 43 anos na política. Como ativista, como dirigente ou como analista. Posso garantir que é impossível fazer previsões políticas. Nenhum analista poderia prever um percurso tão errático como o da popularidade de Vargas. Justamente porque as decisões políticas são complexas.
O economista Ernest Mandel, na introdução de seu livro “O Capitalismo Tardio”, sugere a importância da análise feita em dois níveis: dedutiva e indutiva, mas também, lógica e histórica. Relembra Marx para quem a essência e a aparência histórica jamais coincidirem. O papel da ciência, neste sentido, é explicar, não prever. Gaiatos que gostam de fazer apostas em política sugerem que cientistas políticos só narram o que já ocorreu. E estão certos. Quem faz previsão é cartomante.
Citei Mandel porque este autor coloca as cartas na mesa (não resisti a este trocadilho infame) quando afirma que “uma análise materialista não se harmoniza a uma dialética idealista, mas uma dialética materialista: ela lida com fatos empiricamente verificáveis”.
Então, ciência – e aí se encontra a ciência política – não projeta o futuro. Mas, pode apresentar TENDÊNCIAS, sempre no plural. Tendências são cenários montados a partir da escolha de alguns indicadores que são adotados como balizas para a análise. Se os dados da realidade alteram, modificam a composição ou relação entre os indicadores escolhidos e, assim, redefinem as tendências. Em outras palavras: se Vargas vivo era odiado, com o suicídio se tornou quase unanimidade nacional e permaneceu assim ao longo dos anos.
Tendências são possibilidades que são apresentadas a partir de sinais concretos do momento analisado. Não são previsões. Daí que o analista profissional pondera sobre as probabilidades de uma tendência se firmar como mais provável ou indicar novas tendências. O tempo todo.
Vivemos uma profusão de informações e mudanças bruscas no nosso modo de viver. Quem imaginaria uma pandemia que poderia durar tanto tempo? Tal instabilidade leva à busca de certezas, de previsibilidade. Nosso cérebro busca confirmações para nos dar segurança. Por este motivo que brasileiro adora apostas: viver no nosso país é andar sobre uma corda bamba. Num momento de crise e desgoverno, a corda fica ainda mais frouxa. As apostas no futuro acabam ganhando contornos de desespero, de busca ardorosa por uma certeza.
É por aí que acabamos – nós, cientistas e analistas políticos – gerando ódios e ressentimentos. O pior – ou mais engraçado – é que cientista sério não faz NUNCA previsões, mas os apostadores, mesmo assim, adoram nos acusar de fazer previsões furadas. É a busca da previsibilidade que dá segurança que joga na armadilha do viés de confirmação.
Espero ter explicado. Cientista político sério não cai na armadilha de fazer projeções sobre o futuro. Muito menos faz apostas. O erro que podemos cometer é de identificação parcial de tendências quando deixamos de enxergar uma probabilidade política. Nada mais.

Fonte: Jornalistas Livres