A polarização não é entre direita e esquerda. É Bolsonaro e a democracia. O ex-presidente é a democracia

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

Em decisão colegiada, o STF confirmou a decisão da segunda turma e manteve a anulação das ações do ex-juiz Sérgio Moro contra o presidente Lula. Por 8 votos a 3, a corte devolveu os direitos políticos a Lula, o que na prática o coloca nas eleições de 2022.

Tá, tudo bem! Até lá muita coisa pode acontecer. Não arrisco fazer nenhuma previsão. Formulando melhor, então: se a eleição fosse hoje, a foto de Lula estaria na urna.

Por que a situação política de Lula mudou tanto em apenas três anos?

Apenas três anos?!! Na política, três anos são eternidade. O tempo da política é o tempo rápido, é o tempo do evento. Na política, semanas são décadas. Meses são séculos.

Vamos juntos, leitor e leitora, relembrando:

  • 7 de abril de 2018 – Lula foi preso, após 36 horas aquartelado no sindicado dos metalúrgicos, em São Bernardo do Campo.
  • 1º de março de 2019 – Morte do menino Arthur, neto de Lula. Depois de quase um ano preso, incomunicável, sem ser fotografo, gravado, visto em público, Lula foi autorizado a sair da cadeia para participar do funeral do neto.
  • 26 de abril de 2019 – Após uma verdadeira guerra de liminares, o Supremo Tribunal Federal autorizou Lula a falar, a conceder entrevistas à imprensa. A maior liderança política da história do Brasil, aquele que na primeira década do século XXI falou nos principais fóruns internacionais, ficou mais de ano em absoluto silêncio. Alguns, como este articulista, chegaram a pensar que Lula jamais seria ouvido outra vez, que morreria na cadeia, em silêncio. Naquela altura dos acontecimentos, não era absurdo pensar dessa forma.

8 de novembro de 2019 – Depois de 580 dias preso, Lula foi solto, quando o STF decidiu respeitar o preceito constitucional e considerar ilegal a prisão em segunda instância. Lula saiu da cadeia, mas não recuperou os direitos políticos. Ficou discreto. Falou pouco, agiu pouco. Entrevistas aqui e ali, sempre adotando tom mais à esquerda, algo semelhante aos seus discursos de juventude, nos anos de sindicalismo. Recusou endossar a tal frente ampla contra Bolsonaro. Foi criticado. Em pouco lembrava o estadista conciliador que subiu a rampa do planalto em 2002.

A libertação de Lula não desestabilizou o governo de Jair Bolsonaro como muitos esperavam, e torciam. Lula não saiu pelo Brasil em caravana. Tudo indicava que terminaria os dias como cacique petista e não como liderança nacional. Não por coincidência, esses foram os meses em que Jair Bolsonaro esteve mais forte, governando praticamente sem oposição. No Brasil, ninguém consegue fazer oposição melhor que o PT.

Mas tudo mudou. Lula voltou para o jogo.

Bolsonaro, cada vez mais acuado, ameaça bater em senador, conspira pelo impeachment de ministro do STF e tenta insuflar rebelião na sociedade civil. Em algum momento, o establishment da República achou que era possível controlar Bolsonaro, contê-lo nos limites das instituições democráticas. Hoje, com mais de dois anos de mandato, essa crença não faz mais sentido. Já está claro que Bolsonaro é incontrolável. Seu horizonte será sempre a ruptura democrática.

Aí, pela comparação, é impossível deixar de lembrar com saudades os bons tempos de Lula.

Lula foi o governante mais republicano que o Brasil já teve. Respeitou todos os poderes, não interferiu na autonomia das corporações, sentou-se à mesa com políticos vindos de todos os cantos do país, de todas as orientações ideológicas. Sempre previsível, cumpridor dos ritos. Com Lula no comando, as autoridades podiam dormir sem se preocupar em abrir o jornal pela manhã e ver o presidente ameaçando a nação com golpe de Estado. Não precisavam redigir nota de repúdio toda semana e dar respostas difíceis aos jornalistas.

Com Lula, a vida de todos eles era mais tranquila.

Na época de Lula era normal ver o presidente respeitando a Constituição. Faz muita falta ter um presidente que respeita a Constituição.

Bolsonaro fez a cotação de Lula subir no mercado político. É nessa chave que interpreto o julgamento de 15 de abril. Até mesmo Luís Roberto Barroso, um dos principais algozes de Lula no STF, votou pela restituição dos direitos políticos do ex-presidente.

Há poucos dias, Arthur Lira, figura emblemática do tal “Centrão”, disse que Lula pode ser absolvido. Sérgio Moro, o sabotador geral da República, jamais!

Todas as pesquisas eleitorais feitas nos últimos dias mostram Lula como favorito para a corrida presidencial, como o menos rejeitado entre os principais candidatos. Nas simulações de segundo turno, Lula aparece derrotando Bolsonaro com folga.

Lula farejou a mudança no ambiente e redirecionou completamente o discurso. Piscou para o mercado, aceitou discutir economia mista em estatais como Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Eletrobrás. É como se estivesse dizendo “tão com medo de quê? Têm memória não? O centro sou eu!”.

É que só dá pra ser esquerda puro sangue quem não tem perspectiva de governar.

Não dá pra cravar o resultado das eleições. A análise política costuma ser cemitério para profetas. Impossível saber se na hora H a cultura lava-jatista não conseguirá interditar Lula. A classe C do sudeste, decisiva em eleição presidencial por causa de sua densidade demográfica, aderiu em peso ao bolsonarismo em 2018. Essas pessoas, simplesmente, votarão em Lula depois de tudo que aconteceu? Quem não vence no sudeste, não vence no Brasil.

Temos a pior a elite do mundo. A burguesia brasileira não tem o menor compromisso com a civilização. Quer capitalismo sem liberalismo político. É uma elite mercantil, atrasada. Não duvido que, mesmo depois de quatro anos de mais completo caos administrativo, decida apoiar Bolsonaro novamente, mesmo que isso signifique continuar perdendo dinheiro.

Bolsonaro nunca esteve tão fragilizado, mas não está morto. Político vivo não morre. Alguns não morrem nem depois de mortos.

Definitivamente, não dá pra saber o que acontecerá em 2022.

Certeza mesmo é que Lula foi inocentado pelo STF, tem a confiança da classe política tradicional e lidera as pesquisas eleitorais. Lula foi escolhido pela democracia para enfrentar Jair Bolsonaro.

A polarização não é entre direita e esquerda. É Bolsonaro e a democracia. Lula é a democracia.

Fonte: Jornalistas Livres