DORALYCE - FOTO: BEATRIZ SALGADO/DIVULGAÇÃO

Defensora de questões sociais latentes, cantora e ativista Doralyce teme morrer como Marielle Franco

O forte posicionamento da jovem Doralyce, de apenas 30 anos, frente às questões sociais urgentes a fez ser reconhecida não somente como uma cantora, mas também como ativista. Basta ouvir os seus dois primeiros álbuns solos, Canto da Revolução (2017) e Pílula Livre (2019), para ter clareza disso.

Por conta do engajamento, a artista passou a ser reconhecida como uma das representantes do afrofuturismo, movimento onde a arte ficcional se junta à cultura africana para criticar questões do presente, como a discriminação racial, e repensar o futuro.

“Trata-se de um movimento estético e cultural que pauta a tecnologia e a ancestralidade preta numa mesma conjuntura”, explica Doralyce.

O fato de seu primeiro álbum conter uma linguagem contra a intolerância religiosa e o racismo, com elementos sonoros contemporâneos, a inseriu no afrofuturismo, conceito que ela só ficou sabendo pertencer no ano passado, quando foi tema de doutorado em uma universidade de Chicago.

“Venho falando de uma revolução afetuosa, onde as mulheres na base da pirâmide se colocam como ser pensante. Essa descolonização me posicionou no afrofuturismo, propondo nova sociedade em que as pessoas pretas estejam incluídas”, disse.

Músicas inquietantes

O primeiro álbum de Doralyce, mais puro e orgânico, expõe na faixa-título alguns versos de emancipação: “Levanto a bandeira da revolução/Eu canto e a minha voz ecoa na nação/A jornada é dura, eu não desisto não/Eu tô na rua é pra lutar e que haja flores onde eu pisar”.

Na faixa Miss Beleza Universal, música que tornou a cantora reconhecida, mais condenações: “É ditadura!/Quanta opressão/Não basta ser mulher/Tem que tá dentro do padrão”.

Pílula Livre é um álbum eletrônico com novos versos contra o preconceito: “Para de apontar o dedo, gay, sapata, pobre, velho, padre preto grelo grande, pau pequeno e a falta de argumento/Dedo é pra mexer nas coisas, pra indicar a ponte, pra mexer você”.

E também de lembrança à Marielle Franco: “Tem pergunta que não quer calar e tem dor que não vai passar/A gente se depara com o extermínio do povo de cá/Ela venceu o racismo, venceu a pobreza, entrou na academia mesmo sendo mãe solteira/Foi eleita entre os nossos, defendendo o povo preto, quatro tiros na cabeça não apagam os seus feitos”.

O terceiro trabalho, que pretende lançar no ano que vem, terá o título de Dassalu (uma das líderes da Revolta dos Malês contra a escravidão, ocorrida em Salvador em 1835) e mesclará os estilo desses dois primeiros álbuns em músicas inéditas.

“Farei um manual de sobrevivência para pessoas pretas, indígenas e latinas, com foco nas mulheres, que são que mais sofrem com a violência”, antecipa.

Empoderamento e resistência

Ainda que seja enaltecido com orgulho em álbuns, shows, coletivos feministas e manifestações políticas dos quais participa, seu discurso em prol da mulher preta, do empoderamento feminino e da luta por direitos sociais também a amedronta.

“Tenho medo. É difícil viver num país que falar o que pensa você pode acabar sendo assassinada como Marielle Franco. Só quem morre é preto. Essa necropolítica do racismo me incomoda”, confessa.

Para ela, o racismo estrutural é uma realidade: “É muito difícil lidar com a violência diária por ser preto no Brasil. Você é sempre a pessoa revistada, seguida no supermercado. Questionam o que você está fazendo quando vai a algum lugar, quem te convidou, o que você está fazendo ali”.

Por outro lado, Doralyce vê avanços com crescimento, ainda que tímido, das bancadas políticas de grupos marginalizados da sociedade. “O país está em situação de calamidade pública. A gente precisa se alinhar e lutar pelos nossos direitos. Só vamos vencer o racismo se todos se tornarem antirracista”.

“O dia da consciência negra devia ser para conscientizar as pessoas brancas do que foi feito contra as pessoas pretas”, finaliza Doralyce, que nasceu em Olinda-PE e vive no Rio de Janeiro.

Fonte: Carta Capital