Política do banco no caso da J&F foi organizar o setor de frigoríficos no Brasil para que ele pudesse ganhar competitividade global, diz o economista Arthur Koblitz

Lula ganhou o debate. Opinião, acredite, de Miriam Leitão

Por Arthur Koblitz, na Rede Brasil Atual – A nova intervenção da jornalista Miriam Leitão sobre o BNDES (A verdade não cabe numa caixa-preta, artigo publicado nas edições online e impressa do jornal O Globo, no dia 30 de janeiro) é uma importante oportunidade para trazer o debate público sobre o banco e suas políticas para um foco mais racional e construtivo. 

Isso é fundamental não apenas para a instituição, mas para o debate sobre estratégias para o desenvolvimento do país.

Uma primeira sugestão que fazemos é que devemos separar claramente discordâncias sobre políticas públicas de acusações sobre corrupção. 

No limite, é lógica e, talvez, historicamente possível identificar políticas desastrosas que não foram motivadas por corrupção e políticas muito acertadas que foram motivadas. 

O caso contra corrupção não se enfraquece por esse reconhecimento: políticas motivadas por corrupção só podem dar certo por acidente. 

Reconhece-se aqui apenas que há várias razões para uma política ter resultados desastrosos, sendo a corrupção apenas uma dessas possíveis razões.

O perigo no debate sobre as políticas públicas, e isso tem sido marcante no debate brasileiro, é a propensão que temos de aceitar acusações de corrupção quando a política em discussão nos parece completamente e obviamente desastrosa. 

Aceitar a acusação de corrupção tem a vantagem de simplificar o debate e facilita ganhar o apoio da opinião pública contra aquela alternativa. 

Em suma, a tentação é a possibilidade que se abre para despachar de vez uma política que rejeitamos veementemente. 

Não é totalmente ilógico também esse procedimento. 

Se a política é realmente tão desastrosa, qual pode ter sido sua motivação senão algo escuso?

De qualquer forma deveríamos concordar em resistir a essa tentação, em nos disciplinar para debater com base em evidências. 

Se não há evidências de corrupção, mesmo depois de várias investigações, deveríamos, racionalmente, excluir o suposto fato dos nossos argumentos. A outra disciplina a que todos deveríamos nos submeter é a pluralidade no debate sobre a política pública. 

Pode ser que de um determinado ponto de vista ela não faça sentido, mas que de outro, ela faça.

Isso pode ser um guia contra a “fracassomania” que assombra o debate na América Latina, como diagnosticou há muito tempo Albert Hirschman. Vejamos como se aplica ao artigo de Míriam Leitão.

Miriam considera no início de seu artigo que a ambição do presidente Jair Bolsonaro de encontrar algo de escandaloso no BNDES fracassou, mas logo depois afirma que “As operações com o grupo J&F foram escandalosas”. 

Como podemos entender essa aparente contradição? 

O que Miriam quer dizer aparentemente é que, na sua visão, ainda que não houvesse nenhum escândalo de corrupção no BNDES, as políticas públicas adotadas “nos governos do PT” foram escandalosamente equivocadas e com efeitos desastrosos.

Nota de pé de página: É verdade que Miriam está convencida de que houve corrupção no caso do apoio à J&F com base na evidência da delação de Joesley Batista. Ela reconhece que o empresário exclui o envolvimento de qualquer empregado do banco. 

Se alguém deveria firmar uma convicção apenas numa delação sem prova é uma questão que deixamos em aberto. 

Isso não muda o fato de que o argumento de Miriam é feito sobre a hipótese de que não houve corrupção.

Interessa verificar seus argumentos para identificar porque essas políticas foram escandalosas mesmo que não tenham sido motivadas por corrupção. 

Especificamente no caso do apoio à J&F o argumento é o seguinte:

“Como foram várias dessas operações? O grupo emitia debêntures, o banco comprava uma grande parte ou quase tudo. Com o dinheiro em caixa, a companhia adquiria ativos no exterior. No caso da Pilgrim’s Pride, 99,9% do capital da aquisição foi do BNDES. Isso é escandaloso em si.

“Qual o sentido de usar o dinheiro subsidiado – fruto de endividamento público ou vindo de poupança compulsória do trabalhador (o FAT) – para que um grupo familiar fique muito mais rico e gere empregos e renda no exterior?”

O apoio à J&F pode ser escandaloso ou desastroso, mas não pelos argumentos levantados pela jornalista. 

Um erro factual grave (escandaloso?) da parte dela é desconhecer que os recursos da BNDESPar para a aquisição de ações da J&F, assim como todos apoios da BNDESPar, são feitos com recursos da própria BNDESPar. Não provém do FAT ou de aportes ao Tesouro (única exceção foi o aporte do governo federal para compra de ações da Petrobras. A exceção que confirma a regra). 

Além disso, a BNDESPar é historicamente lucrativa, contribuindo substancialmente para a lucratividade total do BNDES.

Os recursos não foram subsidiados, mas são recursos públicos e não seria realmente absurdo ou escandaloso usá-los para “para que um grupo familiar fique muito mais rico e gere empregos e renda no exterior”? 

Claro que sim! 

E mesmo que esses tenham sido alguns dos efeitos gerados pelo apoio à J&F, a política não foi adotada por essa razão.

O objetivo da política, certo ou errado, pode ser resumido mais ou menos da seguinte forma. 

Organizar o setor de frigoríficos no Brasil para que ele pudesse ganhar competitividade global (o que implicava melhorar medidas nos procedimentos de abate da carne, racionalizar a logística, adquirir acesso a mercados no exterior, o que envolvia adquirir empresas no exterior). 

O ganho para o país viria com o aumento da exportação em um setor no qual havia um potencial competitivo imenso e evitar que essas empresas fossem dominadas por empresas estrangeiras. 

A premissa dessa última meta é de que é melhor que as empresas sejam de capital nacional. 

(A propósito, quando a jornalista destaca o papel da ex-presidente Maria Silvia em manter a J&F como empresa nacional, falha em não destacar o papel crucial que os técnicos do BNDES tiveram em determinar essa decisão. 

Não custa lembrar que os economistas e intelectuais mais considerados pela presidente, como o caso público foi do famoso crítico do Banco e membro do Insper, Sérgio Lazzarini, defendiam que o BNDES deveria permitir a transferência da sede fiscal da JBS para a Irlanda. 

Adicionalmente, a mencionada posição dos técnicos do Banco livrou Maria Sílvia de ser envolvida em todo imbróglio de Joesley e Temer).

Os objetivos da política foram atendidos? Amplamente. 

Aumento de exportação, crescimento extraordinário da empresa brasileira, melhora substancial na formalidade no abate etc. 

Do ponto de vista financeiro, o sucesso dificilmente poderia ser maior. 

Ações compradas por R$ 7 alcançaram recentemente patamar de R$ 30! Lucro que a BNDESPar poderia investir em novas empresas com a finalidade determinada pela nova administração do BNDES. Infelizmente, a nova administração não possui qualquer plano sério sobre reinvestimentos da BNDESPar comprometida que está em acabar com o braço de participações do Banco.

Isso significa que não há crítica a ser feita a essa política? Claro que não. 

Os impactos concorrenciais internos precisam ser avaliados. 

Há muita queixa nessa área, note-se que essa matéria era de responsabilidade primária de outra instituição que aprovou a operação, o Cade. 

Mas o BNDES tem por obrigação considerar isso no futuro também. 

Nós da AFBNDES achamos que deveríamos debater se o conjunto de contrapartidas exigidas da empresa foi suficiente. 

Não deveria a empresa se comprometer com algum laboratório de pesquisas avançadas no setor, por exemplo? 

Esse debate é, entretanto, mais difícil e exige conhecimento do setor e de para onde ele está indo tecnologicamente. 

Mas essa deveria ser a fronteira do aperfeiçoamento da política pública. 

Aqui deveria estar concentrada a atenção da opinião pública especializada.

Em conclusão, um olhar balanceado menos enviesado da jornalista seria necessário e bem-vindo no caso do apoio à J&F.

Outras queixas da jornalista são mais genéricas. Miriam parece ser uma arqui-inimiga de subsídios (que ela associa a “delírio dirigista” e à ditadura militar brasileira), escolha de setores (que ela insiste em classificar, em grande medida injustamente, como escolha de empresas) e ainda faz observações sobre a política de comércio exterior, seu viés ideológico etc.

Genericamente, podemos dizer em resposta que subsídios e escolhas de setores estiveram tão presente no 2º PND da ditadura militar quanto no Plano de Metas da democracia de Juscelino. 

Fora da história do Brasil, foi e é a prática de todos os países que se desenvolveram. 

Está ainda muitíssimo presente na política de países desenvolvidos. 

Vide os casos públicos do apoio de Estados Unidos e Europa a Boeing e à Airbus. 

Mais atual ainda é o apoio que o governo dos Estados Unidos está dando para as suas empresas de tecnologia que competem com a chinesa Huawei pelo predomínio na tecnologia 5G. 

Essas questões são controversas, mas o ponto de vista de Miriam não é resultado de um conhecimento científico estabelecido, para justificar que ela escreva como se estivesse condenando terraplanistas.

Já tivemos oportunidade de debater a ação do BNDES de promoção de exportações, em particular de serviços de engenharia. 

Basta dizer aqui que a explicação do padrão de apoio do BNDES não pode ser explicado por preferências ideológicas. 

E ainda que o retorno dessas operações como um todo foi maior que a Selic, fato que é de conhecimento da atual diretoria. 

O fundo que garantia as operações de comércio exterior é robusto e está de pé.

Encaminhamos esta reflexão em forma de artigo ao jornal O Globo para que fosse publicada, mas não obtivemos resposta do veículo. 

Saudamos, entretanto, a intervenção da jornalista e esperamos contar com sua partição nesse debate que interessa a todos brasileiros.

(*) Economista e presidente da Associação dos Funcionários do BNDES (AFBNDES).

Fonte: Brasil 247