Jair Bolsonaro, Brazil's president, pauses while speaking during a news conference at the Planalto Palace in Brasilia, Brazil, on Wednesday, March 31, 2021. Commanders of Brazil's army, navy and air force were fired on Tuesday after Bolsonaro dismissed his defense chief as part of a broader cabinet restructuring. Photographer: Andressa Anholete/Bloomberg via Getty Images

Foto: Andressa Anholete/Bloomberg via Getty Images

Reza a lenda que em meados de dezembro de 1968, às vésperas da promulgação do famigerado AI-5, Pedro Aleixo, então vice-presidente da República, teria confessado ao presidente Costa e Silva que temia pelos rumos do país diante do recrudescimento do regime militar. Diz-se que, em uma conversa particular e franca, o político – um civil – teria dito ao militar a célebre frase “o problema de uma lei assim não é o senhor [presidente], nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.

Sabemos bem o que aconteceu: o AI-5 deu início aos indecorosos anos de chumbo da ditadura, e o suposto protesto de Aleixo entrou para a história. O tal “guarda da esquina” se tornou uma figura do nosso imaginário político, um beltrano corriqueiramente acionado para dar sentido aos abusos e excessos praticados por autoridades. Personagens que, de uma forma ou de outra, supostamente se sentiam abalizadas pelos péssimos exemplos de seus superiores ou por interpretações torpes da lei.

A fala de Aleixo se desdobrou em uma espécie de “teoria de tudo” sobre o funcionamento do país e, consequentemente, uma fórmula mágica para a resolução de todos os nossos problemas. Se “o problema é o guarda da esquina”, devemos, então, impedir que ele se sinta autorizado a agir como age.

Essa foi uma das maiores (e mais falsas) promessas da Lava Jato. Não é preciso forçar a memória para lembrar que figuras como Sergio Moro pregavam a ideia de que a operação marcaria uma nova fase da luta contra a corrupção, pois perseguiria e puniria de forma exemplar aqueles que, segundo o próprio juiz e seus aliados (óbvio), seriam os maiores corruptos do país. Dito de outra forma, prometiam que a corrupção se resolveria num passe de mágica, pois a prisão dos maiores corruptores” assustaria e desautorizaria os pequenos corrompidos.

O verdadeiro circo midiático montado ao redor da operação (incluindo-se aí uma série televisiva) contribuiu para a sustentação dessa falácia. A própria candidatura de Jair Bolsonaro, em 2018, se aproveitou dessa repisada “teoria de tudo”.

Nos grupos de WhatsApp e páginas de Facebook, Bolsonaro era sinônimo de homem íntegro, de uma pessoa que dedicou boa parte de sua vida a servir a nação, ora como militar, ora como político. Um verdadeiro exemplo a ser seguido por todo povo brasileiro, especialmente por seus pares da política. Sua eleição, defendiam, seria o começo de uma verdadeira transformação moral.

Mais do que um político exemplar, ele também era a encarnação da clássica falácia punitivista de que o crime só prolifera porque os criminosos se sentem autorizados pela impunidade de seus pares. Bolsonaro representava a promessa de que eles seriam punidos de maneira exemplar, colocando-se contra tudo e contra todos os que supostamente impediam que isso acontecesse.

“Direitos humanos para humanos direitos”, vocês se lembram.

Não estamos num filme de herói, em que a derrota do vilão resolve todos os problemas que ele encarna.

E aqui atingimos o ponto chave dessa discussão: Bolsonaro, sabemos, não é o autor dessa frase, tampouco das ideias que lhe conquistaram milhões de votos, a presidência em 2018 e quase uma reeleição em 2022 – para não falarmos dos seus mandatos como deputado. Bolsonaro é “apenas” um sintoma, o rosto de algo que o antecede e que, tudo indica, infelizmente sobreviverá à sua derrocada.

Ao longo dos últimos quatro anos, seus apoiadores e aliados foram tratados como meros “guardas da esquina” do agora ex-presidente, como se de alguma forma dependessem dele para simplesmente existir, de um exemplo para se sentirem autorizados a agirem como agiram, como agem e provavelmente continuarão agindo.

Sua derrocada representaria a destruição desse movimento e a dispersão dessa turbamulta revoltosa. A ideia é bem confortável, admito. Como em um desses filmes de herói, em que a simples derrota do vilão resolve todos os problemas que ele encarna.

Mas a realidade é outra, infelizmente.

Os “guardas da esquina” que tanto preocupavam Aleixo não desapareceram após a revogação do AI-5. De fato, eles não apenas nunca dependeram do ato para abusar de suas prerrogativas, como comprovam os dados sobre vítimas da ditadura pré-1968, como rapidamente se adaptaram à sua extinção, à derrocada dos governos militares, e seguiram atuando livremente.

Não por acidente, afinal, muitas das ideias que davam sustentação ao regime, lhes garantindo apoio popular, seguiram intocáveis por décadas a fio após seu fim. Muitas, inclusive, estão na base do apelo popular e atual do ex-presidente Bolsonaro.

E essa é a lição. Não podemos minimizar a importância da derrota de Bolsonaro, mas tampouco podemos acreditar que ela resolve os problemas que pavimentaram seu caminho até o Planalto.

Estamos, no Brasil, diante de uma das maiores máquinas de desinformação do planeta, e não há qualquer sinal de que ela irá desaparecer, mesmo diante da persecução penal de algumas de suas figuras mais notórias e extremas. A máquina da extrema direita seguirá espalhando o medo, a desinformação e as ideias que levaram Bolsonaro ao poder. Ideias que, caso nada seja feito, podem ser responsáveis pela eleição futura de seu sucessor. Candidatos não faltam.

O problema não é apenas o “guarda da esquina” ou aquele que o autoriza. O problema é a própria estrutura que permite a sua existência.

PS: Quis o destino que Pedro Aleixo fosse traído pelos próprios militares em que dizia confiar. Em 1969, uma sucessão de atos baixados pela junta militar formada após o adoecimento de Costa e Silva impediu que ele assumisse a presidência da República e extinguiu arbitrariamente o seu mandato, abrindo espaço para o governo de Emílio Garrastazu Médici.