Ninguém tem dúvida de que o momento-chave da posse de Lula no cargo máximo do Executivo federal foi protagonizado pelo grupo diverso que subiu a rampa ao lado do presidente. Mas houve um fato especialíssimo naquele dia – e que precisa ser reverberado conscientemente por todas e todos nós: as centenas de pessoas gritando “SEM ANISTIA” durante o discurso do presidente no Palácio do Planalto, uma semana antes de o prédio ser depredado em atos terroristas pró-golpe.
Sem anistia = sem perdão institucional para os diversos crimes cometidos durante a administração assassina de Jair Bolsonaro.
Sem anistia = sem a possibilidade de deixarmos no esquecimento o sofrimento imenso causado pela máquina de matar pretos, pobres, indígenas, mulheres, florestas.
Não demorou para comentaristas e colunistas da imprensa comercial passarem tanto a tentar classificar o discurso como “não conciliador” (como fez a CNN depois que Lula falou em revogar a política armamentista do ex-presidente), quanto cravar que o mandatário começou a governar de forma revanchista, como se tivesse sugerido uma “caça às bruxas” (como lemos na coluna de Igor Gielow, na Folha de S.Paulo).
Se tem um mal que até hoje morde duramente nossos calcanhares, mal que nos lasca simbólica e literalmente como sociedade, é nosso antigo gosto por reconciliar o irreconciliável. Nossa República foi fundada sem que o estado e os ricos escravocratas se responsabilizassem pelos enormes contingentes de pessoas negras sem emprego e qualquer proteção social no pós-abolição, um pacto firmado entre políticos, militares e empresários de então.
Nosso pós-ditadura militar fez o mesmo exercício de complacência, colocando civis e agentes do governo na mesma balança e anistiando a todos, como se os últimos não tivessem compromissos institucionais específicos, dentre os quais, é claro, a tortura e o assassinato nunca poderiam fazer parte. Mais recentemente, um Congresso inteiro tolerou e não cassou um então deputado que homenageou, sem qualquer constrangimento, justamente um torturador em plena casa legislativa.
O resultado de todos esses pactos e silêncios, vocês já sabem: explodiu no domingo, quando acompanhamos uma maioria de pessoas brancas destruindo prédios na Praça dos Três Poderes enquanto posavam alegremente para fotos ao lado de policiais.
A mesma imprensa que noticia as humilhações sofridas pela população azeita a máquina que as produz.
Todos esses episódios e os acordos que vieram depois deles contaram com as pretensas objetividade e imparcialidade da imprensa brasileira, e parte dela já demonstrou a que veio nessa terceira administração de Lula. Enquanto os três poderes eram quebrados à base de truculência, burrice e financiamento golpista, o presidente decretou intervenção federal no Distrito Federal e nomeou o jornalista Ricardo Cappelli para ficar à frente da segurança pública da região.
Em pouquíssimo tempo, a coluna Painel, da Folha, editada pelo jornalista Fábio Zanini, publicou: “Interventor federal em Brasília foi presidente da UNE e levou Fidel para congresso”. Isso mesmo. Enquanto uma (nova) tentativa felizmente fracassada de golpe estava em curso, o foco escolhido para falar do nomeado foi sua ligação com um movimento estudantil nos anos 1990 e o apoio demonstrado naquela mesma década a um ditador falecido em 2016. No mínimo, mesquinho e vulgar.
Ah: é bom lembrar que a mesma coluna, poucas horas após Lula ter sido declarado legitimamente presidente na noite de 30 de outubro, procurou o criminoso Steve Bannon para ouvir suas platitudes e depois produzir a nota abaixo, cujo título é de uma irresponsabilidade atroz, incompatível com quem diz fazer jornalismo profissional. O cheiro é puro eau de golpismo com notas de deslumbre com as fontes do poder.
Não é problema algum jornais e jornalistas terem suas preferências ideológicas e apoiarem esta ou aquela corrente: o que nos fez falta, sempre, foi uma clareza maior sobre esses posicionamentos, quase sempre mantidos no armário da falsa neutralidade. Mas a questão aqui é a total incompatibilidade entre alimentar o autoritarismo e os ataques à democracia e divulgar textos pretensamente laudatórios à última.
Mais ainda: o ponto é a atualização do apoio da imprensa à realização de pactos que sempre foram interessantes para uma minoria poderosa e terríveis para uma maioria que precisa arcar com os altos custos dessas conciliações.
Sabe a reforma trabalhista de 2017, tão exaltada pela imprensa comercial e vendida por ela como a solução para nos tirar do buraco da recessão? Foi sob sua determinação que as mulheres, principalmente negras, passaram a ser ainda mais exploradas e precarizadas, como mostra esse ensaio acadêmico de 2020. As mesmas mulheres que são constrangidas de variadas formas no mercado de trabalho, como vimos recentemente no vídeo que mostrou uma caixa de supermercado de 69 anos urinando nas próprias calças por não ter autorização de sua chefia para ir ao banheiro. A mesma imprensa que noticia essas humilhações azeita a máquina que as produz.
A objeção das mulheres
A histórica má vontade do jornalismo comercial brasileiro com o Partido dos Trabalhadores não pode servir de desculpa para que os necessários processos judiciais para punir crimes cometidos por Bolsonaro sejam rotulados de “revanchistas”. Isso é um escracho não só com milhões de pessoas direta ou indiretamente vitimizadas pelas políticas de morte de Bolsonaro e seus chegados, a exemplo de Damares Alves e Milton Ribeiro, que largaram mulheres e crianças à própria sorte. É também acintoso para com a própria legislação brasileira e a Constituição, tratadas como paninho de limpar tábua de churrasco pelo evadido ex-presidente da República.
Não é porque a porrada não caiu sobre a cabeça de vocês que ela não existiu ou foi sentida como afago, caros jornalistas, colunistas e diretores de redação.
Me refiro especificamente aqui aos colegas homens, porque é importante iluminar uma questão a partir do gênero: enquanto muitos deles continuam irresponsavelmente a contemporizar os crimes de Bolsonaro e dos bolsonaristas e a sugerir pactos conciliatórios, são as jornalistas mulheres, mesmo na imprensa comercial, que têm marcado o necessário contraponto nas coberturas. Profissionais que trabalham, inclusive, em veículos com histórico de apoio a movimentos autoritários ditatoriais, a exemplo da Rede Globo.
Tratar a punição de crimes cometidos por Bolsonaro como revanchismo é um acinte aos milhões vitimizados por suas políticas de morte.
No mesmo domingo em que os terroristas destruíram as instalações dos Três Poderes, a apresentadora Daniela Lima, da CNN Brasil, entrevistava o deputado do PP Ricardo Barros quando começou a ouvir dele uma absurda defesa dos terroristas. Barros ainda culpou o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes por ter “forçado a confiança nas urnas”. Honrando o que toda e todo profissional de imprensa que respeite seu bloquinho, caneta e compromisso público deve fazer, Lima interrompeu ao vivo o congressista: “Esse discurso que o senhor traz aí, de ‘olha, impor a confiança na urna’, a confiança na urna é imposta pelos fatos, deputado. A irresponsabilidade retórica [de] gente que o senhor chama de jornalista, deputado, e que pedia guerra civil e que chamava de frouxa gente que não fosse para a rua… Jornalista, deputado, perdão, somos eu e meus colegas que estão nas ruas, muitos deles apanhando dos homens de bem, pessoas de família que o senhor veio defender”. (Íntegra aqui, no Observatório da TV).
Como jornalista, professora e pesquisadora do campo, já tinha observado como o bolsonarismo causou um reposicionamento mais claro entre mulheres da imprensa que, de uma ou outra forma, o toleravam. Não há mistério aí, uma vez que foram justamente elas as mais agredidas durante os quatro anos daquela lamentável gestão.
Lembro-me que, em 2021, a jornalista da GloboNews Natuza Nery, ao ser continuamente interrompida pelo senador Marcos Rogério, do União Brasil, também lhe disse, ao vivo, que ele não faria com ela o que fazia com os e as colegas durante a CPI da Covid-19. Flávia Oliveira, da mesma emissora, é outra presença importantíssima na produção de contranarrativas produzidas muitas vezes pela própria empresa que a abarca.
Essas jornalistas, de diferentes espectros ideológicos, se aproximam de uma série de outras profissionais e coletivos de imprensa que nunca baixaram a guarda para o fascismo tropical amplificado por Bolsonaro, a exemplo do Portal Catarinas, Gênero e Número, Agência Pública, Cynara Menezes, As Cunhãs, este Intercept, etc.
Quem é condescendente com os crimes de Bolsonaro e classifica suas investigações como “caça às bruxas” também chuta, de longe, os seus próprios colegas. Fomenta a malta que destruiu o patrimônio público e agrediu e roubou pelo menos 10 profissionais de imprensa nos atos terroristas em Brasília. Um repórter do jornal O Tempo teve uma arma pressionada contra sua cabeça, depois foi ameaçado com outra arma nas suas costas. Repórteres da Band, Folha, AFP, Poder 360, Reuters, Washington Post e TV Jornal e TV Guararapes relataram agressões físicas – as duas últimas ontem, em frente ao acampamento montado na frente do Comando Militar do Nordeste, na BR 232, em PE.
Se o seu antipetismo ou sua fé ultraliberal te faz achar que essas agressões são acessórios desimportantes em nosso prédio democrático, procure já ajuda profissional, colega.
Em tempo: não existe bolsonarismo moderado. Quem faz ato contra resultado legítimo nas urnas e chama intervenção militar já é golpista. Quem espanca, depreda, planeja bomba, é terrorista. Todo bolsonarismo é radical.
Repito:
Sem anistia = sem perdão institucional pelos diversos crimes cometidos durante a administração assassina de Jair Bolsonaro.
Sem anistia = sem a possibilidade de deixarmos no esquecimento o sofrimento imenso causado pela máquina de matar pretos, pobres, indígenas, mulheres, florestas.