Uma operação conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego, o MTE e da Polícia Federal resgatou mais de 200 trabalhadores que atuavam na colheita de uvas na cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, em condições análogas à escravidão. Eles colhiam as uvas que iam parar nas garrafas de vinhos de marcas de renome como Aurora, Salton e Garibaldi. Desses 200 trabalhadores, 196 eram baianos. Foram recrutados na Bahia com a promessa de um salário de R$ 4 mil por dois meses de trabalho e com as passagens de ida e volta pagas pela empresa. Mas, ao chegarem lá , foram submetidos ao terror escravocrata.
Além das jornadas exaustivas de trabalho – chegavam a trabalhar das 5 da manhã às 8 da noite – , os trabalhadores dormiam em alojamentos insalubres e eram submetidos à tortura física e psicológica por capangas armados. Não tinham acesso à toalha, lençol e talheres. Recebiam comidas azedas e tomavam banhos gelados. Caso reclamassem ou ameaçassem abandonar o trabalho, eram chicoteados, atacados com spray de pimenta e choques elétricos. Como se já não bastasse esses requintes de crueldade, os trabalhadores ainda eram impedidos de sair do alojamento e eram obrigados a comprar produtos diretamente com os empregadores por preços mais altos que os do mercado. Extorquidos e endividados, ficavam ainda mais presos aos seus escravocratas.
Aurora, Salton e Garibaldi lavaram as mãos diante do caso. Em notas protocolares e ultrajantes, se fizeram de loucos e jogaram a responsabilidade nas costas de uma terceirizada responsável pela contratação dos trabalhadores. Lamentaram o ocorrido, repudiaram a violação dos direitos humanos, mas se absolveram. Os beneficiários da mão de obra escrava se apresentaram como meras vítimas da empresa terceirizada. Qual é a chance de empresas desse porte, que têm aumentado os lucros nos últimos anos, ignorarem completamente as condições em que os trabalhadores que colhem suas uvas vivem? Eu imagino que nenhuma, mas, mesmo que fosse uma questão de ignorância, ainda seria indecente.
A Família Salton confessou que não averiguou “as condições de moradia oferecidas por este prestador de serviço a seus trabalhadores”, o que demonstra o tamanho do seu apreço pelos trabalhadores. Talvez esse descuido tenha ocorrido porque a família estava muito ocupada no início deste ano comemorando o maior faturamento da história da empresa: R$ 500 milhões. O fato é que, por lei, a responsabilidade pelas condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores são tanto da terceirizada quanto da contratante. Outro fato é que a precarização do trabalho promovida pelo liberou-geral da terceirização durante o governo Temer fez diminuir os custos da mão de obra e aumentou os lucros das empresas. Os empresários sabem muito bem de tudo isso. .
O Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves também lançou nota defendendo as vinícolas que se beneficiaram do trabalho escravo. Apesar do mesmo tom protocolar das notas das vinícolas, o último parágrafo é de uma sinceridade de embrulhar o estômago. “Situações como esta, infelizmente, estão também relacionadas a um problema: (…) a falta de mão de obra e a necessidade de investir em projetos e iniciativas que permitam minimizar este grande problema. Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade.” Ou seja, segundo essa lógica estúpida e mentirosa, não há mão de obra local porque há muitos vagabundos pendurados no Bolsa Família e o que resta, muitas vezes ao empregador, é buscar trabalhadores em outros estados para trabalhar em regime análogo à escravidão. Essa justificativa cínica e sem sentido lógico serve apenas para aliviar a consciência de uma elite que naturaliza a cultura escravocrata.
‘Esse quadro de terror não é um caso isolado do capitalismo. A escravidão moderna é algo recorrente no mundo do trabalho’.
Outro advogado dos escravocratas foi o vereador de Caxias do Sul Sandro Fantinel, do Patriota. Incorporado pelo espírito de um senhor de engenho, o vereador subiu ao púlpito da Câmara de Caxias para defender as vinícolas e atacar o povo baiano: “a única cultura que os baianos têm é viver na praia tocando tambor”. Defendeu a contratação de argentinos que, segundo ele, diferente dos baianos são “limpos, trabalhadores e corretos”. A cultura escravocrata, racista e xenófoba está tão impregnada na sociedade, que um vereador se sente à vontade para falar essas barbaridades em público. Esse racismo e xenofobia são os valores que também movem os escravocratas modernos de Bento Gonçalves. Um dos poucos trabalhadores gaúchos resgatados pela Polícia Federal afirmou: “Eles [os baianos] apanhavam bastante. Qualquer coisa que estivesse errada, apanhava. Nós do Sul não apanhávamos.”
Fechar os olhos para as condições de trabalho dos seus trabalhadores e depois jogar a culpa em uma empresa terceirizada que os contratou é uma prática comum das grandes marcas que se beneficiam do trabalho análogo à escravidão. Esse quadro de terror não é um caso isolado do capitalismo. A escravidão moderna é algo recorrente no mundo do trabalho. Muitas grandes empresas de diversos setores da economia já foram denunciadas por trabalho escravo no Brasil. Cutrale, Cosan, Nespresso, Starbucks, JBS, Marfrig, Minerva, Ambev, Heineken, Zara, Renner, M.Officer, Marisa, MRV Engenharia, OAS e Odebrecht são algumas das empresas que já viram seus nomes envolvidos com denúncias de trabalho escravo. Apesar de ser um dos países que mais combatem o trabalho escravo moderno, o Brasil é também um dos países em que a cultura escravocrata está mais impregnada. Desde 1995, quase 60 mil trabalhadores em condição análoga à escravidão foram resgatados.
Fora do Brasil, a escravidão moderna também é uma prática corriqueira. Marcas conhecidas mundialmente lucraram e lucram às custas do trabalho escravo. Gigantes como Apple, Nike, Dell, Nintendo, Microsoft, Apple, HP, Nokia, Samsung, Sony, Coca-cola, Hershey’s, Nestlé e Victoria’s Secret são algumas das empresas que enriqueceram usando esse tipo de mão de obra. Em muitos dos casos, há utilização de mão de obra escrava infantil e de imigrantes ilegais.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, o número de pessoas em situação de escravidão moderna tem aumentado. Em 2021, 10 milhões de pessoas a mais estavam em situação de escravidão moderna em comparação com 2016. São cerca de 28 milhões de trabalhadores vivendo nessas condições, sendo que 86% deles são empregados pelo setor privado.
O trabalho escravo moderno é um problema inerente ao sistema de produção capitalista. Ao contrário do que se diz por aí, a escravidão não acabou com a chegada do capitalismo. Ela só ganhou novas roupagens com o passar do tempo. Pessoas em situação de vulnerabilidade como pobreza extrema e imigração ilegal aceitam quaisquer condições de trabalho para não morrerem de fome. Os capitalistas se aproveitam dessa situação criada pelo próprio capitalismo para reduzir os custos da sua mão de obra e impulsionar os lucros.
‘Os danos aos escravocratas modernos são ínfimos. Escravizar trabalhadores vale muito a pena para o capitalista’.
Quando grandes empresas são denunciadas, iniciam um plano de contenção de danos à imagem, jogam a culpa em terceirizadas, pagam multas irrisórias e seguem funcionando normalmente. Os danos aos escravocratas modernos são ínfimos. Escravizar trabalhadores vale muito a pena para o capitalista. Lucra-se alto explorando mão de obra escrava durante anos e, quando pegos com o chicote na mão, pagam multas que não chegam a fazer cócegas em seus lucros. Ninguém vai pra cadeia e tudo volta ao normal.
Não consigo imaginar punições mais justas para empresários que lucram com a escravidão moderna que não sejam a cadeia e multas que impactem seu patrimônio. Enquanto não houver mecanismos que punam rigorosamente quem trata seus empregados como lixo, seguiremos assistindo a esse show de horror e de cinismo dos grandes empresários.