É no Pantanal sul-mato-grossense, mais precisamente na região da Nhecolândia, que o gado caminha solto no pasto, se alimenta de gramíneas e vai para mesa como a principal proteína do prato. Quem opta por uma carne orgânica e sustentável sabe que, muito mais do que um produto extralimpo e no “padrão terroir”, o qual vai mexer no campo sensorial, também está fazendo uma escolha que respeita o meio ambiente.
“Criado no brejo”, com jogo de bolita e corrida de cavalo, entre outras brincadeiras, Leonardo Leite de Barros, de 62 anos, se orgulha do produto que comercializa hoje e da infância no Pantanal. Desde cedo, diz que tinha muitos amigos para brincar nas fazendas vizinhas, mas, jamais se esquecia dos afazeres e logo aprendeu a lidar com o gado.
Herdeiro de terras, sempre acompanhou a comercialização dos animais, porém, a única questão que não o envaidecia era o antigo modo de criação e abate, já que, nas palavras dele, a região possui uma “vocação” para carne sustentável e orgânica.
“Eu comecei há 20 anos, fazendo outro tipo de abate, mostrando o gado se alimentando de pastagem nativa do Pantanal. E vi que a região tinha uma vocação para produção de carne sustentável e orgânica, então, buscamos recentemente um caminho para rentabilizar este produto, que tem um gosto característico de carne de animal a pasto. Isto é pura sustentabilidade. E toda a carne brasileira pode ter esta característica. Aliás, a exigência por estes diferenciais está cada vez maior. O mercado exige que o produtor faça processos de certificação”, argumentou Barros.
Nos últimos quatro anos, no entanto, Leonardo buscou meios de profissionalizar o negócio e aí nasceu a BioCarnes, que produz de linguiças a hambúrguer pantaneiro. “Nossa comercialização já era feita com a grande indústria, mas, enxergamos a necessidade de uma indústria voltada para este nicho de mercado, uma carne com certificação e que tenha os predicados voltados à sustentabilidade, atendendo à questão social, ambiental e, principalmente, mantendo o olhar para este consumidor”, afirmou.
Do pasto à mesa, consumidor sabe dia que animal nasceu e tudo o que comeu
De início, Leonardo diz que duas propriedades em Corumbá e uma em Rio Negro, a 153 km de Campo Grande, foram certificadas pelo IBD (Instituto Biodinâmico). “Agora estamos buscando a certificação das emissões de carne do efeito estufa, em toda a produção. É um selo da quantidade de emissão de carbono, de uma empresa independente. Desta forma, o produto é diferenciado tanto no ponto de vista da certificação quanto a origem, por isso dizemos do pasto a mesa: a pessoa sabe o dia que nasceu, tudo o que comeu, tudo isto registrado e auditado por um terceiro”, ressaltou.
Abatidos em frigoríficos terceirizados, as carcaças chegam em caminhões e vão para o frigorífico, em Campo Grande. “Aqui é feita a desossa, todo o processo e aí as carnes são porcionadas e embaladas, entregues uma vez por semana em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Curitiba, onde vão para casas de produtos naturais, boutiques de carne e supermercados. Temos cerca de 50 parceiros e, em Campo Grande, vendemos em somente um supermercado”, comentou.
Alimentação saudável: conceito precisa ser difundido
Conforme o empresário, o conceito da alimentação sustentável ainda possui muitos mitos e é um “conceito que precisa ser mais difundido”. “Estamos iniciando agora uma grande divulgação. Nós entendemos que precisávamos primeiro nos estabelecer no mercado para depois difundir mais a ideia em Campo Grande. A gente sabe que o grande mercado consumidor, quando se fala nestes aspectos, são os grandes centros”, disse.
Quando se fala no gosto, Leonardo ressalta o produto com “predicados sensoriais”. “É o que o francês chama de terroir. Nossos animais nasceram no Pantanal, comeram pastagem nativo e isto transfere para a carne um diferencial. O produto também é porcionado para caber dentro da panela, em porções pequenas e que não precisam ser manipuladas, já que é extralimpa. É uma carne vermelhinha, você só tempera e pronto”, comentou.
Sobre o preço do produto ser superior, o produtor rural fala em um “estigma criado pela sociedade”, já que o preço é equiparado com o de uma carne comum. “Os valores são muito próximos e a pessoa pode fazer uma escolha por esta carne, que é de altíssima qualidade. No nosso caso, por exemplo, as novilhas, quase 80%, são da raça Braford, de animais jovens e engordados no pasto”, finalizou.
Além da boutique própria da BioCarnes, o produto é distribuído para açougues e um hipermercado, no caso de Campo Grande.
“Nós comercializamos a carne orgânica desde o início da loja. Ela é embalada a vácuo e isto facilita muito, então, nós compramos vários cortes e a aceitação eu considero grande, porque sempre tem alguém pedindo”, afirmou ao Jornal Midiamax a gerente Camila Eduardo Brito, de 28 anos.
De acordo com a gerente, mesmo o preço sendo um pouco acima da média, muitos clientes não se importam e ressaltam que a preferência é pelo gosto e até o cheiro. “Hoje em dia o gado é muito confinado, então, tem muita gente que busca e prefere a orgânica por não ter nada disto. É uma carne com sabor diferenciado, sem cheiro, então, a aceitação é grande por isso eu acredito”, opinou.
Alimentar o futuro é olhar o passado
Se o entendimento alimenta o diálogo e a conscientização alimenta a cidadania, como preconizado no manifesto da CNA (Confederação Nacional da Agricultura), a carne orgânica de Mato Grosso do Sul é o resultado de tradição, pesquisas e sustentabilidade na mesa da população.
O terroir, palavra francesa e que no Brasil indica não só um espaço geográfico, mas a cultura e interação humana com o território, foi capaz de influenciar não só o manejo da bovinocultura, mas os resultados na pecuária de corte no Pantanal.
A carne produzida no bioma vai além da porteira, percorre centenas de quilômetros e chega às prateleiras de mercados e casas de carnes.
A ABPO (Associação Pantaneira de Pecuária Orgânica e Sustentável), por meio de um associado de Corumbá, distante 426 km da Capital, levou para o Festival Internacional da Carne, em Campo Grande, alguns cortes da carne orgânica sustentável.
Na devolutiva foram feitos elogios sobre a qualidade da proteína. “Nesse caso do festival, era carne de novilha terminada a pasto nativo. Esse produto você tem um terroir nativo do Pantanal, traz esse sabor e diferenciação que é bastante específico do Pantanal. Isso foi apreciado pelos consumidores e tivemos vários relatos positivos de consumidores que apreciaram”, descreve o presidente da ABPO, Eduardo Cruzetta.
A ABPO acumula mais de duas décadas de trabalho com pecuaristas da região do Pantanal em prol da certificação da carne sustentável aliada à continuação da cultura pantaneira. Tudo isso é somado a uma preocupação ambiental e demanda de mercado, já que os consumidores estão cada vez mais reflexivos sobre a origem e qualidade do que colocam à mesa.
Uma pesquisa da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) revelou que os brasileiros têm preferido produtos mais naturais e livres de antibióticos e conservantes. O estudo realizado com 3 mil pessoas, em 12 estados, aponta que 71% dos entrevistados preferem produtos mais saudáveis, mesmo que sejam mais caros.
A servidora pública Alessandra Mauro é uma sul-mato-grossense preocupada com a alimentação saudável, especialmente para o filho Samuel. Desde pequeno, a alimentação dele é preenchida por frango, ovos, frutas e óleos orgânicos. Ela diz que ainda não comprou a carne orgânica, mas que tem vontade de aderir.
“Sou super a favor, são alimentos com menos agrotóxicos, menor hormônio. Todos deveríamos comer orgânico, mas é muito mais caro. Esses alimentos têm mais valor nutrititvo”, ela ressalta.
Produção se alinha à demanda
Alinhado ao crescimento da demanda está a preocupação dos pecuaristas em atender os consumidores, traçando um “plano” para alimentar o futuro. Eduardo Cruzetta explica que, entre os planos da ABPO, estão a criação de protocolos específicos para determinados clientes.
“Por exemplo, tem uma parceira da ABPO que ela demanda uma carne que não consome ureia e nem antibióticos […] temos uma demanda do cliente e trazemos para os produtores. Os que se interessarem vamos levar propostas de remuneração. Vamos ter a oportunidade de ter produtos de várias categorias e especificações”, ele detalha.
O pecuarista detalha que o protocolo da ABPO para a carne orgânica tem três pilares: rastreabilidade, a originação Pantanal (pode ser de MS ou MT) e o seguimento. Essa certificação é uma valorização da produção pantaneira e uma garantia da permanência do homem no bioma.
“Nossa demanda é crescente de consumidores mais conscientes com relação à questão da sustentabilidade e também da produção desses produtos, da origem, de como são produzidos. É também uma questão do sabor, temos grande variação também. O consumidor pode ter a preferência pela carne mais macia ou sabor mais específico do terroir de determinada região, como a nossa da pastagem nativa ou plantada”, ressalta o presidente da ABPO.
O balanço da associação do último ano mostra o sucesso da iniciativa, com mais associados, animais abatidos, maior faturamento, fazendas e áreas certificadas.
O número de cabeças abatidas, por exemplo, quase dobrou no intervalo de um semestre, saindo de 31.803 nos seis primeiros meses de 2022 para 60.132 de julho a dezembro do mesmo ano.
Outro ponto destacado é que o trabalho possui parceria com várias instituições para trazer desenvolvimento e equilíbrio ao Pantanal, como Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul), Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), IHP (Instituto Homem Pantaneiro), Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e sindicatos rurais.
MS é pioneiro: da Carne Carbono Neutro ao Carbono Nativo
Há 50 anos, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) vem contribuindo em várias áreas da pecuária e agricultura, buscando sistemas mais eficientes e que tragam melhores ganhos produtivos. Nesta caminhada, é em Mato Grosso do Sul que ocorre, recentemente, o lançamento dos principais capins, programas de melhoramento de raças bovinas para gado de corte, além de várias ações para sistemas integrados voltados especificamente ao Pantanal, por exemplo.
Nestes estudos, em 2016, o Estado se tornou pioneiro ao lançar a marca conceito Carne Carbono Neutro, voltada para pecuária de corte. “Lembro exatamente que, na época, foi uma ideia de vanguarda. No mundo, ninguém tinha conhecimento de algo do gênero na época, então, houve um alavancamento dos estudos e da interação com o governo do Estado nesta temática”, ressaltou o pesquisador Roberto Giolo, da Embrapa Gado Corte.
Em seguida, programas voltados para a pecuária, como o Precoce MS, que atua com melhoria de gado de corte desde a década de 90, passaram a ser intensificados, bem como o programa Terra Boa e, desde então, existem várias pesquisas sendo desenvolvidas no programa Estado Carbono Neutro.
“Este ano ainda deve ocorrer o lançamento dos selos Carne Baixo Carbono e Carbono Nativo, que devem ser muito importantes para a região do Pantanal e arredores. Lá temos também um trabalho muito importante, de zoneamento do bioma. E a Embrapa atua lá em parceria também com associações e instituições privadas, como a ABPO [Associação Pantaneira de Pecuária Orgânica e Sustentável, com o estudo da fazenda sustentável por exemplo”, disse.
Sustentabilidade também traz lucro
Alimentar o futuro é pensar no equilíbrio no uso de recursos naturais e produção. O mundo conta com 8 bilhões de pessoas e garantir a segurança alimentar da população de forma sustentável é um desafio que precisa ser equacionado por políticos, a agropecuária e pesquisadores.
Um dos grandes obstáculos é a redução de GEEs (Gases de Efeito Estufa) emitidos pelos puns e arrotos de bovinos. Neste sentido, o selo CCE (Carne Carbono Neutro) é um modelo inovador que pode ser seguido na pecuária para a mitigação de poluição aliado à rentabilidade.
As certificadoras da marca-conceito desenvolvida pela Embrapa passaram por credenciamento junto ao ICNA (Instituto da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária), que garantem que o produto está dentro dos critérios exigidos.
A Fazenda Santa Vergínia, em Santa Rita do Pardo, a 242 km de Campo Grande, é a primeira do Brasil a obter a certificação. O início do projeto nasceu de uma necessidade: fazer a reforma de pastagens de forma lucrativa e sustentável.
Entre testes dentro da propriedade e a parceria com a Embrapa para chegar ao número ideal de árvores por hectare para obter a mitigação de GEE, a Fazenda Santa Vergínia atingiu os critérios necessários para obter o selo de CEE, como ter no mínimo 200 árvores por hectare.
Atualmente são 14,5 mil hectares de IPF (Integração Pecuária-Floresta) e 600 árvores por hectare. O rebanho tem cerca de 23 mil cabeças das raças Nelore e cruzamento entre Nelore e Angus. Neste sistema, são plantadas árvores na área em que se pretende criar o gado e entre a floresta é cultivada a forrageira que servirá de alimento aos animais.
O uso de duas atividades em uma mesma área gera duas receitas ao produtor, que pode ter o investimento no sistema silvipastoril recuperado ao longo dos anos.
A meta é que até 2026 a área de integração cresça e chegue a 20 mil hectares na propriedade de 30,76 mil hectares, conforme explica o consultor agropecuário da fazenda, José Albino Zacarin.
“Hoje existe uma pressão muito forte internacional sobre o alimento brasileiro. Imagina a satisfação do consumidor em saber que o animal produzido neste sistema não agrediu em nenhum momento o meio ambiente? Quem planta floresta no sistema integrado está fazendo um grande bem para o meio ambiente e ao consumidor”, ele destaca.
Zacarin explica como o sistema é altamente produtivo, com a redução de moscas, aumento de peso e conforto térmico aos animais, reforma de pastagens degradadas, madeira que pode ser comercializada e a certificação da CNN, que agrega valor e qualidade à produção.
“Quando falamos em maciço florestal é uma floresta densa. Quando há florestas você tem algum risco como fogo, com pragas, doenças, questões de vento. Então, isso vira alto risco. Quando você integra, o risco diminui em até 95% porque você tem duas culturas, de pastagens e pecuária”, esclarece.
No caso da Fazenda Santa Vergínia, a floresta plantada é de eucalipto, que precisa ser destinada para o setor moveleiro.
Já na pecuária, existe uma bonificação especial pela arroba da carne certificada que gira em torno de 10% a 15% por ter sido produzida em um sistema nobre. O abate e comercialização desta proteína é feita pela Marfrig, uma das maiores indústrias frigoríficas no mundo.
“Eu não vejo mais o pecuarista sendo aquele cara tradicional sem integração. Quando você parte para esse nível você fica incomparável e tem melhorias no meio ambiente”, ressalta o consultor pecuário.
MS se destaca no cenário nacional
Selos como produto orgânico, carne sustentável do Pantanal e Carne Carbono Neutro colocam Mato Grosso do Sul em destaque no cenário nacional quando se fala em alimentos nutritivos, naturais e não prejudiciais ao meio ambiente.
De acordo com o consultor técnico do Sistema Famasul, Gabriel Mambula, o aumento de abate de animais ano a ano demonstra o aumento da demanda por esses produtos.
“Especificamente na questão carbono, contribuímos no balanço das emissões de gases de efeito estufa, mas, acima de tudo, podemos compartilhar nossa expertise, inspirando outros estados produtores a adotarem as práticas de produção”, ele ressalta.
O consultor técnico do Sistema Famasul aponta que os pecuaristas têm respondido a esse aumento de interesse da população por produtos menos nocivos para o meio ambiente com o aumento de áreas certificadas.
“Dados mais recentes mostram que de 2021 para 2022 dobrou-se o número de propriedades cadastradas no programa de produção sustentável e orgânica da ABPO. Observa-se que todas elas possuem certificação na produção de carne orgânica e sustentável, podendo levar o selo de ‘Carne orgânica e sustentável do Pantanal de Mato Grosso do Sul’. Todo ‘selo’ que qualifica os produtos sejam eles da área rural, industrial ou de serviços atraem consumidores que buscam tais características, passando por carbono, produção orgânica, qualidade, identificação geográfica e outros”, ele explica.
Gabriel Mambula também ressalta a importância de incentivos fiscais para viabilizar a produção e incentivar a adesão. Na Pecuária Orgânica e Sustentável do Pantanal, existe a redução do valor do ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços) que incide sobre a carne comercializada.
“No geral, é importante que o Estado apoie um ambiente de negócios que favoreça a comercialização de produtos originários de baixa emissão de carbono por unidade de produto, sejam eles da área rural, industrial ou de serviços. Em um ambiente favorável, naturalmente haverá a expansão destas práticas, sem que necessariamente haja a necessidade de aportes financeiros por parte do poder público”, detalha.
Os produtores de Mato Grosso do Sul alimentam o futuro, como endossa a CNA, com emprego de ciência e tecnologia e otimizam o trabalho no campo, aumentando a produtividade, sem deixar de lado a preservação do meio ambiente.