No Brasil dos nossos tempos, a crítica foi monopolizada pela direita. Essa é a notícia ruim, a pior de todas

por Jornalistas Livres

ARTIGO

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia 

Na política, a rejeição é afeto muito poderoso. A rejeição aglutina pessoas, reúne projetos diferentes a partir de uma identidade negativa. Diferente da adesão, a rejeição política nunca tem único dono. É sempre objeto de disputas.

Foi exatamente isso que aconteceu nas eleições de 2018, quando o anti-petismo foi um dos fatores decisivos na corrida presidencial. Até ser definitivamente conquistado por Jair Bolsonaro, o anti-petismo foi objeto de vigorosas disputas: Aécio Neves, Marina Silva, Ciro Gomes. Todos tentaram se alimentar do anti-petismo.

Bolsonaro acabou vencendo porque o anti-petismo, na verdade, era sentimento anti-sistêmico, pois o PT era socialmente lido como gestor de um sistema considerado corrupto. Na alça de mira estava não apenas o Partido dos Trabalhadores, mas, sim, o regime político criado na experiencia da redemocratização.

Como Bolsonaro passou quase 30 anos no Parlamento falando mal da democracia, acabou tendo “lugar de fala” pra fazer a crítica. No aprofundamento da crise democrática, a nostalgia com a ditadura evoluiu para a crítica ao sistema.

O tempo passou e de lá pra cá já conta quase ano e meio. O PT decidiu não exercer protagonismo na disputa pelo anti-bolsonarismo, focando a atuação no Legislativo e em alguns pronunciamentos de Lula, Dilma e Haddad, em tom quase protocolar. A soltura de Lula não se concretizou como elemento capaz de alterar estruturalmente o jogo político, como muitos apostavam. O diagnóstico dos petistas é que qualquer movimento mais brusco do partido acabaria fortalecendo Bolsonaro. Não dá pra dizer que o raciocínio não faça sentido.

Lula ainda é capaz de ser protagonista? Ou a pecha de representante de um sistema corrupto colou nele de tal forma a ponto de condená-lo a ser personagem de segunda importância daqui pra frente?

Já Bolsonaro deixou de ser pedra para ser vidraça. Presidente precisa governar e até aqui ele só agiu como o agitador fascista que sempre foi. Não se trata exatamente de incapacidade de governar. Bastaria se cercar de bons técnicos, moderar o discurso que a coisa andaria de alguma forma, principalmente no começo do mandato, quando o tempo costuma ser aliado do presidente. Bolsonaro não governa nos ritos da democracia porque isso não faz parte da essência política dele.

Bolsonaro é o colapso da democracia, é o crítico, é o outsider.

O resultado é o caos administrativo. Resultado não, o caos é o projeto, o objetivo. Bolsonaro só existe no caos.

Se por um lado o caos serve para fidelizar ainda mais uma base social formada por pessoas que se encantam com a ideia de serem oposição ao “sistema”, por outro, alarga o campo de rejeição. O anti-bolsonarismo já é realidade política incontornável, e está sendo disputado.

Por enquanto, a disputa está acontecendo à direita do espectro ideológico. A primeira a ser derrotada por Bolsonaro não foi a esquerda, mas sim a “direita tradicional”, a tal “direita democrática”, que hoje tenta reconquistar o território perdido. Aqui, a liderança é de Rodrigo Maia, que comanda reação das instituições da República contra a ameaça bolsonarista.

Mandetta, que saiu do Ministério da Saúde com grande aprovação popular, seria outro player nessa disputa pelo anti-bolsonarismo. O problema é que agora, fora do governo, sem mandato, e vindo de um estado periférico na geopolítica nacional, Mandetta perde palanque. Enquanto isso, o gabinete do ódio tentará desconstruir sua imagem, acusando-o de incompetência na gestão da testagem em massa da população para a Covid-19. Vamos ver se cola. Não duvido. Não subestimo essa gente.

Têm também os governadores do Estado, que estão numa corrida insana para decidir quem é mais anti-bolsonaro. A Rede Globo, aparelho ideológico do tucanato paulista, já escolheu seu anti-bolsonarista dos sonhos: João Doria.

Doria não está preocupado apenas em defender a “ciência” e combater a pandemia. Também está fazendo política. Todos estão. O azar de Doria é que ele também já começa a ser visto como representante do establishment, aliado da Globo, do STF, do Congresso.

Huck e Moro estão calados. Ambos têm potencial para herdar a energia crítica no caso da derrocada de Bolsonaro. Ambos conseguiriam performar o discurso do “outsider”. Moro mais que Huck. Se moverão o menos possível. Querem o mar pegando fogo para comer peixe frito.

Mesmo que Bolsonaro caia em desgraça, tudo indica que seu capital político, fundado na crítica, continuará refluindo à direita. Ainda não apareceu alguém do outro lado para radicalizar a crítica, para radicalizar o discurso do combate à corrupção e da defesa da propriedade e da vida contra a violência urbana, para propor mecanismos de participação política direta, apontando alguma solução para a crise de representatividade.

No Brasil dos nossos tempos, a crítica foi monopolizada pela direita. Essa é a notícia ruim, a pior de todas.