Hoje, parece claro que Bolsonaro tem duas cartas na manga, está investindo em dois projetos golpistas. Se vai dar certo não tem como saber. Golpe de Estado é operação complexa

por Jornalistas Livres

ARTIGO

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

Em 1962, no calor de uma grave crise institucional, Wanderley Guilherme dos Santos publicou o livro “Quem dará o golpe no Brasil?”. Texto de intervenção, rápido, atravessado por marcas de oralidade. O jovem cientista político, na época filiado ao Partido Comunista, verbalizou aquele ambiente de incerteza, deixando para nós o testemunho de uma geração que via o futuro se fechar diante de seus olhos.

Wanderley Guilherme dos Santos não está mais entre nós. Morreu recentemente, deixando um vazio impreenchível na inteligência nacional. Sua pergunta é mais atual que nunca. Novamente, estamos vivendo situação de crise institucional. Outra vez, a possibilidade da ruptura está no horizonte. Mais uma vez, o futuro está sendo bloqueado.

Quem dará o golpe no Brasil?

Há mais de um projeto golpista.

Nas últimas semanas, os generais palacianos foram com frequência às paginas da imprensa. Augusto Heleno e Eduardo Ramos ameaçaram explicitamente o país com golpe militar. Mourão defende o governo. Generais da reserva escrevem manifesto apoiando Bolsonaro.

Militares da ativa ocupam o governo em centenas de cargos de segundo e terceiro escalões. Resta pouca dúvida de que os militares se tornaram os mais poderosos aliados do bolsonarismo.

Mas esse casamento é recente. Nunca é demais lembrar que Mourão foi a última opção para a vaga de vice-presidente na chapa que venceu as eleições presidenciais de 2018. Bolsonaro tentou o centrão, tentou Janaína, tentou o sujeito que se diz príncipe. Tentou Magno Malta. Ninguém quis apostar. Ninguém levou fé em Bolsonaro. Magno Malta achou mais seguro tentar a reeleição para o Senado pelo Espírito Santo. Perdeu. Foi escanteado no governo. Se arrependimento matasse, o cabra já estaria morto e enterrado. Deve chorar em posição fetal todos os dias pela manhã.

Ao longo do primeiro ano de governo, o núcleo ideológico foi hegemônico nas disputas internas e constantemente ofenderam e humilharam os generais. Chegaram mesmo a derrubar Santos Cruz, que comandava a pasta da Secretaria de Governo.

Bolsonaro passou 2019 inteiro tentando tirar das Forças Armadas o controle sobre a comercialização de armas de fogo. O objetivo era claro: construir uma base armada miliciana que fosse capaz de sustentar um regime de força contra as instituições estabelecidas, incluindo aí as próprias Forças Armadas.

O projeto golpista orgânico do bolsonarismo, portanto, é miliciano, é paramilitar. Ecoando a crítica da modernidade desenvolvida por Olavo de Carvalho na década de 1990, desde o primeiro dia de seu governo, Bolsonaro vem tentando armar suas milícias, construir sua tropa pessoal, encontrando nas PMs estaduais campo fértil para proselitismo ideológico. Isso fica muito claro na dinâmica dos protestos de rua que vêm acontecendo sempre aos domingos.

As PMs são tchuchuca com os bolsominions e tigrão com os antifas.

Mas nem tudo na vida acontece como o planejado. A ruptura com o PSL, a escalada crescente de reação por parte das instituições da República e o derretimento do apoio popular levaram o Bolsonaro a mudar a rota, não sem conflitos com o núcleo ideológico. O evento que marcou essa mudança de rumo foi a nomeação de Braga Netto para o comando do Ministério da Casa Civil, em fevereiro desse ano.

Chegou-se a ventilar que Braga Netto seria o “presidente operacional” do Brasil, o que faria de Bolsonaro uma marionete manipulada pelos generais. Isso nunca aconteceu. Bolsonaro sempre foi o chefe do governo, e passou a fazer uso retórico da imagem das Forças Armadas, como quem diz “Não mexam comigo porque eles são meus amigos”.

A crise com Sérgio Moro selou de vez a aproximação de Bolsonaro com os generais palacianos. Ao denunciar Bolsonaro, Moro colocou todos os ministros, incluindo os generais, no campo da prevaricação. Agora, mais do que nunca, Bolsonaro e os generais estão do mesmo lado, juntos contra o STF.

Juntos irão até o fim. Se o fim vai ser a ruptura institucional, a derrocada, o sucesso eleitoral em 2022 é história ainda a ser escrita. Fato mesmo é que o governo se tornou um bunker onde Bolsonaro e seus generais resistem ao cerco institucional liderado por Celso de Melo, Rodrigo Maia e Alexandre de Moraes.

As Forças Armadas não têm um projeto para o país. Foram reduzidas à constrangedora posição de guarda pretoriana de um governo formado por bandidos de baixo-clero. Com os generais montando guarda na porta do bunker, Bolsonaro tenta ganhar tempo para organizar suas milícias, mirando o golpe dos seus sonhos.

Os generais da reserva, comandantes sem tropa, leões sem dentes, ameaçam a nação com um golpe porque estão até o pescoço atolados no esgoto bolsonarista.

O bolsonarismo raiz vai construindo suas redes milicianas, apostando na sua agenda ideológica: transformar o Brasil num paraíso yankee tropical, com o Estado mínimo e a casa grande, com patriarcas armados, senhores da vida e da morte dentro de seus domínios, sem nenhum constrangimento institucional.

Golpe miliciano e golpe militar-pretoriano. Dois projetos distintos. Bolsonaro está com um pé em cada barco.

Em 1962, Wanderley Guilherme cravou: o golpe aconteceria, mas “por razões históricas” não seria um golpe militar, já que as Forças Armadas “jamais se projetaram como uma casta à frente da sociedade”. Na opinião do professor, seria um golpe civil liderado pelas elites entreguistas comandadas por Carlos Lacerda. No máximo, os militares escoltariam os golpistas civis, que seriam as mesmas elites que o PCB acreditava serem aliadas táticas no processo de modernização do Brasil.

Como sabemos, Wanderley Guilherme errou na previsão. Acontece nas melhoras famílias.

Hoje, parece claro que Bolsonaro tem duas cartas na manga, está investindo em dois projetos golpistas. Se vai dar certo não tem como saber. Golpe de Estado é operação complexa. A parte mais difícil de todo golpe de Estado é sempre o dia seguinte.

Porém, a julgar pela radicalização dos conflitos entre o presidente e os outros poderes da República, acho improvável que não haja tentativa de golpe. Virou questão de sobrevivência para o bolsonarismo.

Será golpe miliciano? Será golpe militar-pretoriano? A combinação entre ambos? Só o tempo dirá. É prudente evitar as previsões. Quase nunca a gente resiste à tentação.