Se aceitamos condenar a vítima, aceitamos qualquer coisa. Até a fome do lobo parece razoável
ARTIGO
Alexandre Santos de Moraes, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense
Todo mundo deve ter ouvido a história de João e Maria. Há várias versões, mas a mais famosa em nosso tempo fala de duas crianças que andavam pela floresta e encontraram uma casa feita de doces. Quando viram o telhado de chocolate, as paredes de bolo e as janelas de jujuba, correram pra comer. Estavam com fome. Uma velha senhora ouviu o barulho e saiu da casa. Convidou-os para jantar. A comida estava ótima. Exaustos, foram dormir na cama aconchegante que a anfitriã preparou. Não sabiam, contudo, se tratar de uma bruxa com hábitos antropofágicos que construíra aquela casa dulcíssima para atrair crianças. Essa e outras histórias infantis são narrativas tradicionais de conteúdo moralizante. Muitas vezes se amparam em situações absurdas, como uma casa de guloseimas, para justificar um princípio que seria potencialmente pedagógico. Nessa, por exemplo, a maior preocupação é com nossa suscetibilidade diante das paixões.
Histórias da carochinha tem caído em desuso. Elas não parecem bem ajustadas às preocupações de nossa época. São narrativas que não fazem muito sentido sem que o ônus recaia sobre as crianças. Chapeuzinho Vermelho fez o óbvio: escolheu o caminho mais curto, mas é culpada porque havia um lobo pelos arredores. Dois porquinhos optaram pelo hedonismo e foram severamente criticados pelo porco austero que construiu a casa de tijolo e não parecia muito afeito à diversão. Com João e Maria dá-se algo parecido: as crianças estavam com fome e encontram uma casa de doce. Ora, até um adulto ficaria tentado a devorar a casa. A responsabilidade moral não é das crianças, mas da bruxa canibal que armou esse estratagema sinistro. É óbvio que precisamos gerir nossas paixões. Ninguém em consegue (sobre)viver em absoluto estado de paixão, seguindo freneticamente os impulsos e desejos mais íntimos. No entanto, em situações limite, como criticar aquela que parece a melhor ou mesmo a única opção, ainda que arriscada?
Esses contos se tornaram obsoletos, mas ainda permitem fazer algumas analogias, sobretudo em uma situação limite como a que a pandemia impõe. Do dia pra noite, em função da COVID-19, fomos instados a ficar em casa. Nem sempre a casa é o melhor lugar do mundo. Às vezes faltam coisas em casa e é preciso ir à rua pra buscar. Às vezes a casa é pequena e lá mora muita gente. Nem toda casa possui um bom ventilador ou ar condicionado pra suportar o calor; nem todos tem um bom cobertor para se abrigar do frio. Além disso, por mais tentações que não se encontrem na sala de estar, por vezes podem ser vistas pela janela: o barzinho em que se bate papo na volta do trabalho, o cinema, o teatro, o restaurante, a praça, a praia e por aí vai.
Ficar em casa todos esses meses é uma tarefa difícil. O risco de morte é, naturalmente, um poderoso incentivo, mas o tédio ou cansaço podem ser pais da coragem. Além da própria vida, devemos ficar em casa para preservar a vida alheia, e esse é um argumento ainda mais difícil de sustentar, sobretudo em um país que pouco explora o sentido de vida comunitária, a solidariedade entre povos e pessoas e que também nos solapa, desde a mais tenra idade, com discursos individualistas e competitivos. Infelizmente, até a invenção da vacina, não há alternativa. É preciso estimular as pessoas a ficarem em casa. Contudo, além das tentações que fazem essa tarefa não ser lá muito fácil, surgem contos da carochinha e armadilhas para nos afetar através dos vícios e paixões.
Desde o início da pandemia, Bolsonaro se mostrou contrário ao isolamento horizontal. Buscou persuadir seu rebanho com o argumento de que a economia deveria ser preservada, já que a fome também mata. Defendeu que apenas os idosos e portadores de doenças crônicas ficassem em casa, como se morassem sozinhos e o vírus ficasse no tapete quando os convivas retornassem da labuta. Dá-se, porém, que o presidente carece de poder para proibir o isolamento. Assim, decidiu investir nos discursos. Defendeu um medicamento que tudo indica ser inútil, estimulou manifestações, alegou que o vírus é mortal apenas a quem não tem “histórico de atleta”, disse se tratar de uma “gripezinha” e se eximiu tanto quanto possível da responsabilidade pelas mortes. Bolsonaro só não fez o que não pôde para interromper o isolamento. Muitos foram levados ao abatedouro como gado inocente que acredita na boa fé do fazendeiro.
Na contramão da ambição do presidente, a maioria dos prefeitos e governadores insistiu na política do isolamento. Por causa disso, Bolsonaro abriu outra trincheira e decidiu apelar para as paixões, tal como a velha canibal que queria devorar João e Maria. Em suas manifestações públicas, Bolsonaro investe em narrativas que gozam de enorme apelo entre seus seguidores. Em 25 de junho, por exemplo, lamentou que os festejos de São João tenham sido interrompidos pelo coronavírus e fala das dificuldades que o setor de turismo enfrenta. No mesmo dia, comemorando a safra, estimulou a rivalidade entre os trabalhadores do campo e da cidade, dizendo que apenas os últimos interromperam as atividades laborativas. Comenta, igualmente, a proibição de frequentar a praia, que julga autoritária, além de recordar que a OMS (contra a qual antagonizou o tempo inteiro) fala da importância da Vitamina D no processo de recuperação.
Na live do dia 18 de junho, menciona a ministra Damares e se diz preocupado com o crescimento do número de divórcios, violência doméstica e outros abusos que aumentaram com a quarentena. O acesso à praia, que seria sinônimo de saúde, também entrou no radar de Bolsonaro na semana do dia 4 de junho, além dos problemas domésticos que supostamente seriam estimulados pelo isolamento. Na semana anterior, comentou também em sua live que conversou com o prefeito Marcelo Crivella sobre o retorno do futebol, que é visto frequentemente como a grande “paixão nacional” e que, segundo ele, deixa as pessoas menos estressadas.
Há muito mais. Citando a UNICEF em sua live do dia 14 de maio, disse que o lockdown estaria contribuindo para o aumento das mortes de crianças e adolescentes; mencionou também estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para argumentar que a renda dos informais caiu drasticamente e que milhões estão desempregados, motivo que deve acender o alerta dos brasileiros porque “emprego é vida”. Não satisfeito com as narrativas, exultou a própria decisão de incluir, além da indústria e da construção civil, os salões de beleza e as academias como atividades essenciais.
Bolsonaro sabe que as pessoas precisam trabalhar. Sabe também que muitos gostam de praticar suas atividades físicas e de se sentirem mais bonitos(as) com ajuda de profissionais. Sabe que gostam de ir à praia, de assistir futebol, de ver os filhos e filhas aprendendo nas escolas, de conviver com os colegas de trabalho, de tomar uma cerveja no fim do expediente. Bolsonaro sabe disso tudo porque nada disso é novidade.
A luta contra o coronavírus é também uma luta contra o poder deletério da nova rotina, das privações e das perdas. É também a luta contra um governo que lava as mãos e diz que as pessoas morrerão de fome sem qualquer pudor. Bolsonaro sabe o que nos afeta porque tudo isso é absolutamente real, e não deixa de explorar nossas paixões e necessidades para que mais gente se contamine e os prejuízos diminuam, sobretudo para atender o interesse do empresariado que só vê dinheiro diante de si. O presidente da República constrói castelos de doces diante de crianças com fome, mas se estou certo em não condenar João e Maria por fazer o que a necessidade impunha, tampouco parece-me razoável julgar as pessoas que abandonam o isolamento. A culpa é do lobo mau, ou da velha antropofágica, ou de Jair Bolsonaro e seus contos da carochinha. Nessa história, infelizmente, não há final feliz, e se é possível tirar alguma moral, é que não convém condenar o povo, a não ser que o objetivo seja jogá-lo nos braços do presidente. Se aceitamos condenar a vítima, aceitamos qualquer coisa. Até a fome do lobo parece razoável.