Neste artigo, especialista reflete sobre as disparidades em torno de direitos previdenciários dos militares em relação aos demais trabalhadores
Brasil de Fato – Notícias de que a previsão orçamentária para 2021 indicaria um aumento de 48,8% para o Ministério da Defesa correram a mídia no último dia 17 de agosto. A ampliação do orçamento aos militares alcançaria o valor de R$ 108,56 bilhões – em torno de R$ 5 bilhões a mais que o montante destinado à Educação, que deve sofrer ainda mais cortes.
Segundo o Ministério da Defesa, a mídia é difamatória, pois o aumento para o ano que vem seria de apenas 2,4% em relação ao ano de 2020, pois a Lei Orçamentária Anual (LOA) previa R$ 106 bilhões destinados à Defesa. Porém, isso não é verdade.
Estes ganhos orçamentários das Forças Armadas – em especial de seus oficiais – se somam a (mais) uma vantagem financeira que a organização adquiriu no ano passado: manter-se excluída da reforma da Previdência.
Logo que assumiram o governo, Jair Bolsonaro e o Ministro da Economia, Paulo Guedes, pressionaram para que a pauta da reforma fosse prioritária na agenda econômica por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.6/2019. Segundo o posicionamento oficial do governo e de setores neoliberais, a reforma seria necessária para sanar o rombo financeiro no sistema previdenciário e, diante desta urgência, era necessário um sacrifício coletivo de todos os trabalhadores brasileiros.
Em fevereiro do ano passado, Guedes afirmava que as Forças Armadas “vão conosco na reforma, mas não na PEC”, o que significava estabelecer maiores alíquotas de contribuição dos militares ao seu Regime de Proteção Social afim de inserir a organização no contexto geral de uma reforma previdenciária, e promover uma necessária reestruturação na carreira por meio do Projeto de Lei (PL) n.1.645/2019.
Bolsonaro, Paulo Guedes e o relator da Comissão Especial do projeto na Câmara, deputado Vinícius de Carvalho (Republicanos-SP), enfatizaram que uma reestruturação na carreira militar se justificava para compensar uma série de prejuízos financeiros que as Forças Armadas argumentavam sofrer desde 2001.
Naquele ano, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) passou a Medida Provisória (MP) nº 2.215-10 de 31/08/2001, determinando mudanças no sistema de proteção social militar como, por exemplo, a extinção da pensão às filhas solteiras dos oficiais a partir daquela data (ou seja, o benefício foi mantido para aquelas que já haviam o adquirido).
Segundo a Cartilha de Proteção Social do Exército, essa compensação não se tratava de um privilégio, mas, sim, de um direito, bem como os adicionais por tempo de serviço, licenças especiais e outros cuja retirada implicara em “notórios prejuízos remuneratórios”.
Diante disso, o PL n.1.645/2019 compensaria esses prejuízos por meio de maiores compensações sobre o soldo e, em contrapartida, os militares participariam com maiores alíquotas de contribuição, aumento universal de 7,5% para 10,5% gradualmente até 2022 e um aumento de 30 para 35 anos de serviço obrigatório.
Houve duas principais linhas de questionamento ao projeto. A primeira, mobilizada pela mídia e especialistas na área econômica, se concentrava nos ganhos comparativos que as Forças Armadas obteriam em relação aos servidores civis. A título de comparação, os militares se aposentam sem idade mínima, mantendo a paridade salarial, enquanto os servidores públicos civis só podem se aposentar com 62 e 65 anos para mulheres e homens, respectivamente, sem paridade.
Ainda, o projeto de lei foi questionado por se inserir em um momento de cortes de gastos, visto que a reestruturação da carreira poderia custar até R$ 80 bilhões aos cofres públicos. Na contra-argumentação, as Forças Armadas afirmaram que o novo arranjo no sistema de proteção social resultaria em um saldo de R$ 10,5 bilhões até 2029.
A segunda grande crítica ao projeto veio de dentro das casernas. Para aumentar o total de contribuição, o projeto de lei incluiu como contribuintes todas as patentes militares – excluídos os que cumprem serviço obrigatório – e ainda, as polícias e bombeiros militares.
Além disso, na reestruturação da carreira, houve um aumento substancial no adicional por habilitação, que são os cursos de especialização, mestrado e doutorado realizados pelos militares, e a criação de um adicional por disponibilidade militar. A partir de 2023, militares que completarem cursos de nível doutoral receberão um acréscimo de 73% sobre o soldo, um aumento de 43% em relação à legislação anterior.
Ocorre que essas categorias estão disponíveis apenas para oficiais, enquanto suboficiais e praças ficam restritos a participarem de cursos de especialização e aperfeiçoamento (cujo adicional alcança o máximo de 45%). Ou seja, além de arcarem com gastos maiores nas contribuições, praças e suboficiais não usufruem dos adicionais incluídos na reestruturação.
Por isso, durante a votação do projeto na Câmara, houve intensa manifestação contrária a essa disparidade. Por serem vedadas manifestações públicas, muitos militares contam com a mobilização de associações formadas por esposas e parentes, que formam o conjunto da denominada “família militar”, como a União Nacional de Familiares das Forças Armadas e Auxiliares (Unifax) e a União Nacional das Esposas de Militares das Forças Armadas Brasileiras (UNEMFA). Representantes dessas associações criticaram o texto, acusando o presidente Jair Bolsonaro de traição à causa militar.
Em relação às tensões na cadeia hierárquica, a resposta oficial das Forças Armadas é de que a concentração de adicionais nos cursos de maior nível de aperfeiçoamento estimula a meritocracia e reforça os valores castrenses basilares de hierarquia e disciplina. Assim, o texto seguiu sem maiores alterações e foi encaminhado para aprovação no Congresso. Tornou-se a Lei n. 13.954 em novembro de 2019.
Há algumas perguntas que devem ser feitas, e a primeira delas é por que existe uma distinção entre os sistemas de proteção social, se tanto civis quanto militares são servidores assalariados?
Segundo as Forças Armadas brasileiras, a profissão militar é uma categoria distinta das civis porque os militares estão a serviço permanente do Estado, lhes negando alguns direitos básicos dos funcionários civis, como a greve. Ainda, o exercício da função militar impõe uma série de sacrifícios pessoais devido à extenuação física e a responsabilidade exclusiva de garantir a segurança do Estado.
A segunda pergunta é se essa distinção, cuja premissa é debatível, justifica o comportamento autônomo das Forças Armadas brasileiras? Não. As Forças Armadas devem estar subordinadas às vontades coletivas do conjunto cidadão, e não às vontades da própria organização ou de uma seleta elite política.
Isso é válido para qualquer contexto político que se pretenda democrático e adquire especial relevância em momentos como o atual, quando a população se encontra vulnerabilizada por altos índices de desemprego e precarização do trabalho, sucateamento da educação pública e, ainda, pela pandemia.
*Mariana da Gama Janot é mestre em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança (UFF) e doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).
Fonte: RBA