Confronto entre os candidatos mais destacados da eleição deu mais uma demonstração de como os agitadores podem usar nosso tempo atualista para destruir a democracia

Na noite da última terça-feira, 29, ocorreu o primeiro debate presidencial para as eleições americanas. Trata-se de um momento importante na corrida eleitoral a pouco mais de um mês da votação em 3 de novembro. O cenário se mostra ainda bastante imprevisível e atípico em muitos aspectos. A começar pelo fato de que, no momento mesmo em que o debate ocorria, alguns cidadãos já haviam depositado seu voto nos correios. Uma das faces
do caos geral criado pela crise do coronavírus.

Mateus Pereira, Valdei Araujo, Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana*

É comum que nesses espetáculos políticos o debate seja bastante tenso e acalorado. Mas com Trump a coisa atingiu outro nível. Ele subverte todas as regras de polidez e boa conduta que configuram a própria política como forma de mediar disputas. Biden também não deixou por menos: “Palhaço”, “mentiroso”, “racista” e “cachorrinho de Putin” foram alguns dos adjetivos usados pelo candidato democrata contra o seu adversário.

No entanto, há uma diferença de grau entre o comportamento dos dois candidatos que não pode deixar de ser sublinhada. Desde a primeira pergunta, Trump falava não apenas no seu tempo, mas também no de seu rival, talvez esperando irritá-lo e deixá-lo confuso. Biden reconhecidamente não é um bom debatedor – algo escancarado pela série de gafes que ele cometeu durante os debates para a nomeação do Partido Democrata. Mesmo com todas as limitações e provocações, o democrata parece ter ganhado o debate, segundo os principais institutos de pesquisa dos EUA. Mas o ponto que mais chamou a atenção foi a performance de Trump e, em especial, a sua insistência em não respeitar as regras que a sua própria campanha havia aceitado previamente.

Nem mesmo o moderador do debate, o aclamado jornalista Chris Wallace, escapou das interrupções constantes do candidato republicano. Ele precisou gritar e repreender Trump em mais de uma ocasião. Em uma delas[1] [2] disse: “Senhor presidente, eu sou o moderador aqui!”. Ainda no começo do debate, logo na segunda pergunta, precisou relembrá-lo a respeito do sistema de saúde nos EUA. Gesto que se repetiu ao longo de todo o evento. Em uma de suas respostas, Trump chegou a dizer que sabia que teria que debater com Biden e o moderador, colocando em dúvida a imparcialidade de Wallace: “Não estou surpreso com isso”, ironizou Trump.

Por sua vez, Biden falou de forma muito mais lenta e com tom de voz mais baixo que seu adversário. Procurava olhar mais para a câmera e se dirigir diretamente ao público, e insistiu por diversas vezes na necessidade de pacificar e unificar o país. Tentou se apresentar como um moderado, enquanto Trump acusava-o de pretender implantar o socialismo nos EUA.

Até que ponto esse discurso de moderado será bem aceito pelo público? Se Biden vencer essa postura pode indicar algum caminho para a esquerda e o centro brasileiro? Essas são perguntas que nos faremos até o final dessa eleição, que terá impactos diretos no futuro do governo Bolsonaro.

Ao longo dos 90 minutos do espetáculo, Biden se manteve mais atento às regras pré-acordadas, fazendo menos interrupções e, quando era interrompido, parou de falar em alguns momentos, esperando a intervenção do moderador para garantir o seu tempo. No entanto, isso não foi possível durante todo o tempo do debate, em função das insistentes intromissões do atual presidente. “Você pode calar a boca por um minuto?”, perguntou retoricamente o candidato democrata, em diversos momentos do confronto.

Mas Trump não se calava. Recusava-se a dar tempo para Biden ou Wallace falarem, o que deixou claro a sua intenção em tumultuar o debate e a sua tentativa de dominar a cena. Ao portar-se como um agitador – ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, repetia o mantra de sua campanha, “Lei e ordem” – Trump transformou o debate em um verdadeiro show de cacofonia. Para tentar dar ordem àquele caos, o moderador chegou a gritar contra o presidente. Aliás, um dos pontos levantados na imprensa foi a necessidade de mudar as regras para os próximos debates – sugerindo inclusive a possibilidade de se desligar o microfone quando um candidato falar no tempo reservado ao adversário.

Ao assumir o papel de agitador, Trump se revela mais uma vez como um político bastante sintonizado com a condição atualista, na qual convivemos com mudanças rápidas e contínuas sem, no entanto, criarmos a possibilidade de transformações estruturais. Nessa condição, o respeito às regras do jogo deixa de ter importância. Quanto a isso, o contraste entre os dois candidatos se revelou não só em relação às regras do debate em si, mas também quanto à própria legalidade da eleição deste ano. Enquanto Biden não hesitou em aceitar o resultado do pleito de novembro, qualquer que ele seja, Trump se recusa a assumir tal compromisso, acusando o voto por correio de ser uma fraude, exatamente como Bolsonaro e os bolsonaristas fizeram e farão em relação à urna eletrônica.

Há uma questão material, de fundo, importante e que torna o resultado da eleição americana imprevisível. Como bem afirma o cientista político polonês Adam Przeworski: “Eu tentava entender como alguém como Trump podia vencer uma eleição nos EUA e se manter popular entre 40% da população. A renda dos 50% da população pobre está estagnada desde o final dos anos 1970. As pessoas não acreditam que seus filhos estarão em melhor situação do que eles, o que acontecia desde 1820. Tivemos presidentes democratas e republicanos, e as pessoas percebem que quase nada mudou[3] .”[1] Para esse autor, a democracia pode ser definida como um regime político onde o governante deixa o poder quando perde as eleições. E é justamente isso que está em questão na atual eleição americana, como o debate deixou bastante claro frente à escandalosa atuação de Trump.

O passado é um elemento mobilizado pelos políticos atualistas para promover a agitação e dispersão. Com efeito, o primeiro debate televisivo da eleição americana deste ano confirmou o argumento que apresentamos em uma coluna anterior.[2] Ao tratar sobre o tema dos protestos contra o racismo, Biden apresentou um discurso que se coaduna com uma visão liberal-progressista da história, ao afirmar que a igualdade racial nunca foi plenamente alcançada nos EUA, mas que esse valor deveria servir como guia para o futuro. Uma ideia de história que reconhece as suas fraturas e imperfeições requerendo ação contínua no presente.

Trump, por sua vez, acusou a “esquerda” de promover o ódio e a divisão entre os americanos com a educação racial, e acusou essa pedagogia (“critical race theory”, ou “teoria racial crítica” em tradução livre) de destruir a essência americana de harmonia, convivência e paz. Ao propor essa visão simplista e congelada do povo americano, o espaço para a ação transformadora se fecha, bastando apenas atualizar tal essência idealizada e defendê-la contra aqueles que a ameaçam – nomeadamente a esquerda, os movimentos de negros e grupos minorizados que se recusam a aceitar o seu lugar nas hierarquias sociais que garantiriam a harmonia social: “Nós temos que voltar aos valores fundamentais deste país. Eles estão ensinando as pessoas que nosso país é um lugar horrível, que é um lugar racista, e eles estão ensinando as pessoas a odiar o nosso país. E eu não vou permitir que isso aconteça”.

Diante de tal afirmativa, Biden retrucou: “Ninguém está fazendo isso. Ele que é o racista”. E reafirmou a necessidade de unificar o país, atravessado pelos protestos contra as injustiças e desigualdades raciais. Essa nostalgia, vinculada a um passado mítico, que guardaria uma suposta “alma americana”, motiva o temor de que essa alma do povo está sob constante ameaça de se perder, graças à ação corruptora da “esquerda radical”. A questão é que com essa estrutura retórica, Trump opera em duas frentes: de um lado, ele se apresenta como o salvador patriota, o defensor da “verdadeira América”; de outro ele envia uma mensagem implícita (nem tanto) para a sua base, majoritariamente constituída de eleitores brancos de classe média, sem formação superior ou moradores de áreas rurais.

E aqui se nota como essa concepção essencializada de história se relaciona com a agitação atualista, encarnada pelo mandatário republicano. Ao se recusar a condenar abertamente os supremacistas brancos e acusar a esquerda, os grupos antifascistas e o Black Lives Matter como promotores da violência, Trump estimula o conflito interno no país e, consequentemente, o caos, a agitação, a radicalização e a divisão, afastando a possibilidade da moderação, da negociação e da construção do comum. É nesse ambiente que ele parece prosperar, ao custo (ou bonus) de corroer as próprias condições para a democracia.

Trump age como um bombeiro que usasse sua posição para atiçar e não apagar os incêndios. Intensificar o caos e o conflito pelo conflito é parte de sua estratégia, pois isso dá a ele a chance de se apresentar como o único com força e disposição para superar a crise. Já Biden, com um discurso mais alinhado com a tradição democrático-liberal, procurou se posicionar, nesse debate, em relação aos seus planos para a saúde, economia, segurança e meio ambiente, acusando o seu adversário de não ter plano nenhum para o futuro.

Mas, na condição atualista, falar sobre planos futuros parece ter menos importância do que saber navegar na agitação dos tempos e se apresentar como o defensor de uma essência idealizada que deve ser preservada a qualquer preço. Se, por um lado, a postura de agitador pode denotar um desespero por estar atrás das pesquisas, ela pode também passar a mensagem de força e destemor, de alguém que luta contra tudo e contra todos, inclusive contra o moderador do debate. De toda forma, o primeiro debate presidencial da eleição americana deste ano deu mais uma demonstração de como a democracia pode ser frágil frente agitadores populistas em um tempo atualista.

O destino do moderado e do agitador mostrará alguns caminhos de ação frente à atual crise democrática. É provável que se Biden vencer com uma margem apertada ou se os conflitos durante e depois da votação se disseminarem a eleição seja judicializada e conflitos de rua possam se espalhar pelo país. Trump está trabalhando firme para que isso aconteça, incentivando seus eleitores a fiscalizar os locais de votação e espalhando denúncias vazias acerca de fraudes. A nós, americanos do Sul, que vivemos sob uma democracia ameaçada, resta torcer para a vitória dos moderados. Mas, após assistir ao debate, fica a certeza de que a dúvida será a nossa companheira até o encerramento (ou mesmo depois) das eleições. Afinal, Trump surfa na onda atualista como um surfista experiente e isso não é pouco. Caso o campo democrático consiga sobreviver ao desafio, deverá ainda ser capaz de governar e reverter as causas estruturais que estão corroendo as democracias, em especial a concentração de renda e precarização do trabalho.

  (*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição.

Fonte: Jornalistas Livres