Donald Trump deixará a Casa Branca, na próxima quarta-feira, e entrará para a história como um líder que contestou as eleições. Especialistas avaliam o legado do presidente republicano, o único a sofrer impeachment por duas ocasiões

(crédito: Jim Watson/AFP)

Na quarta-feira (20/1), o homem que prometeu “tornar a América grande novamente” deixará a Casa Branca pouco antes da posse do democrata Joe Biden. Donald Trump sairá do poder pela porta dos fundos. Levará consigo o fardo de ser o único presidente dos Estados Unidos a sofrer dois impeachments. Nos próximos dias, enfrentará um julgamento no Senado, o qual pode levar à cassação de seus direitos políticos e colocar por terra os planos de reeleição, em 2024. O magnata republicano entra para a história como o líder que denunciou uma fraude eleitoral contestada pelos tribunais, semeou fake news pelas redes sociais, acabou expurgado do Twitter e insuflou uma horda de vândalos a invadirem o Capitólio — durante o ataque à democracia norte-americana, cinco pessoas morreram, em 6 de janeiro. Especialistas consultados pelo Correio avaliam o legado de Trump e os principais pontos de seu governo, marcado por polêmicas, fracassos na política externa e pela retórica inflamada e divisiva.

“Trump será lembrado como o pior presidente da história dos Estados Unidos desde Andrew Johnson, que sucedeu Abraham Lincoln quando este foi assassinado. Johnson também sofreu impeachment, mas foi absolvido pela diferença de um voto”, afirmou James Naylor Green, historiador político da Brown University (em Rhode Island) e discípulo do brasilianista Thomas Skidmore (1932-2016). Ele lembrou que o início da campanha eleitoral, em 2015, foi marcado por comentários racistas sobre imigrantes mexicanos e continuou a usar a retórica xenofóbica ao longo de quatro anos. “Trump recusou-se a enfrentar a pandemia seriamente. Como resultado, quase 400 mil americanos morreram. Não houve um plano de vacinação. Desde a derrota nas eleições, em 3 de novembro, abandonou suas responsabilidades como presidente”, afirmou.

Racismo

Segundo Green, Trump será recordado como uma pessoa que defendeu a manutenção dos nomes dos generais da Confederação — estados sulistas que se opuseram à abolição da escravatura — e saiu em defesa dos supremacistas brancos, da organização Ku Klux Klan e dos neonazistas. “Antes de tudo, será lembrado por ter feito o possível para negar os resultados das eleições. Como alguém que mobilizou a própria base eleitoral para não reconhecer que o democrata Joe Biden venceu e para incitar a extrema-direita a invadir o Capitólio”, comentou.

“Trump também apoiou o desmantelamento das proteções ambientais; enfraqueceu acordos multilaterais; avalizou aqueles que negam o aquecimento global; e construiu alianças com a extrema-direita e com governos autoritários, como o de Jair Bolsonaro”, alfinetou Green. Ainda de acordo com o estudioso da Brown University, o atual presidente também apontou juízes conservadores para a Corte Suprema e implantou uma agenda revolucionária. “Trump foi incapaz de dizer a verdade e ofereceu dezenas de milhares de mentiras à opinião pública. Finalmente, deu legitimidade à extrema-direita e permitiu que ela ocupasse um lugar importante dentro do Partido Republicano.”

Christopher McKnight Nichols, historiador da Universidade Estadual do Oregon e coautor de Rethinking American Grand Strategy (Repensando a Grande Estratégia Americana), destacou que, ao contrário de ex-presidentes, Trump jamais conseguiu encarnar o papel de unificador nacional. “Por exemplo, como antecessores fizeram para tentar curar o país depois de um desastre — George W. Bush, depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, ou Franklin Delano Roosevelt, após o ataque a Pearl Harbor (7 de dezembro de 1941) ou durante a Grande Depressão. Trump teve muitas chances de fazê-lo: tiroteios em escolas, marchas de supremacistas brancos, o assassinato de George Floyd (asfixiado por um policial branco), protestos do movimento Black Lives Matter e a pandemia da covid-19. Em todos os casos, e em última análise, ele preferiu adotar o caminho da divisão e da vantagem pessoal ao da inspiração e da coletividade.”

Desastre

Nichols reconhece que a crise histórica da pandemia e a recessão econômica dificultam uma análise precisa sobre o legado do republicano. No entanto, ele diz que parece claro que a liderança de Trump não ajudou os EUA a responderem aos desafios e avalia os resultados como “desastrosos”. “Tivemos quase 400 mil mortes em menos de um ano e índices altíssimos de desemprego”, pontua.

Para Nichols, o ataque e a invasão ao Parlamento representarão uma memória duradoura e uma mácula na herança política de Trump. Isso poque insurgentes domésticos jamais tinham tomado o Capitólio. “As imagens daquele dia são surpreendentes e horríveis. Congressistas escondidos atrás das cadeiras, temendo por suas vidas. Policiais espancados, patrimônio danificado e a certificação do resultado eleitoral atrasado por pessoas que desejavam anular os resultados de uma eleição legal.” 

Irã

Em 8 de maio de 2018, Donald Trump anunciou a retirada unilateral do acordo nuclear assinado entre Irã, China, França, Rússia, Reino Unido, EUA e Alemanha. O pacto limitava o enriquecimento de urânio de Teerã. Em 3 de janeiro de 2020, um drone norte-americano matou, em Bagdá (foto), o general Qassem Soleimani, chefe da Força Quds da Guarda Revolucionária Iraniana.

Coreia do Norte

Nos quatro anos de governo, Trump encontrou-se em três ocasiões com o ditador norte-coreano, Kim Jong-un. Foram duas cúpulas, em Cingapura (12 de junho de 2018) e em Hanói (27 de fevereiro de 2019), além de uma reunião ocorrida em 30 de junho do mesmo ano, em Panmunjom, na Zona Desmilitarizada (fronteira entre as Coreias). Os encontros tiveram peso apenas simbólico, nada mais.

Cuba

Depois de Barack Obama reabrir a Embaixada dos EUA em Havana e ensaiar uma reaproximação com os cubanos, Trump retomou a política de distanciamento. O republicano pôs fim à possibilidade de viagens individuais à ilha, defendeu o embargo econômico, sancionou o ministro do Interior Cubano por “violações aos direitos humanos” e colocou Cuba na lista de patrocinador do terrorismo.

Covid-19

O negacionismo foi a marca de um governo que minimizou a pandemia da covid-19, entrou em choque com os governos estaduais para forçar a reabertura da economia, atrasou o abastecimento de insumos hospitalares e não mudou o tom nem mesmo quando Trump teve que ser hospializado com a doença. Trump até retirou os EUA da Organização
Mundial da Saúde (OMS).

Racismo

“Não posso respirar.” As últimas palavras de George Floyd, um homem negro asfixiado pelo joelho de um policial durante mais de 8 minutos, ecoaram em todo o país, em protestos violentos. Em vez de condenar a morte de Floyd, Trump criticou os manifestantes e mobilizou a Guarda Nacional para contê-los. Em alguns atos, membros de milícias simpatizantes do presidente causaram distúrbios.

Imigração

Em 1.458 dias de governo, Trump elencou a construção de um muro na fronteira entre os Estados Unidos e o México como prioridade de governo. Chegou a chamar os mexicanos de “estupradores” e de “traficantes”. Não conseguiu cumprir a promessa. Uma das medidas mais polêmicas foi a política de separação de famílias de imigrantes — crianças estrangeiras chegaram a ser colocadas em jaulas.

Fonte: Correio Braziliense