Pesquisa publicada em janeiro pelo renomado epidemiologista Naomar Almeida-Filho, da UFBA, aponta a influência de um governo “populista, conservador e autoritário”, que cultiva e propaga “uma matriz ideológica obscurantista, fundamentalista e negacionista” no resultado da pandemia

(Foto: ABr | Divulgação)

Por Paulo Henrique Arantes, para o 247 – A maior referência brasileira em epidemiologia é o professor Naomar Almeida-Filho, da Universidade Federal da Bahia, escola de que foi reitor. Nesta quadra pandêmica, a imprensa sai a ouvir médicos de todas as especialidades, infectologistas em especial, o que é louvável e necessário. Mas não se vê na mídia, com a frequência e o destaque merecidos, a palavra de especialistas em epidemias e as formas de contê-las, daí a relevância de um estudo de Almeida-Filho publicado em janeiro no site do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde).

Um epidemiologista é, antes de tudo, um profissional socialmente engajado. Não se separam as potencialidades de um vírus e as idiossincrasias socioeconômicas de uma Nação. É com essa visão que o cientista da UFBA desenvolve seu estudo, denominado “Pandemia de Covid-19 no Brasil: Equívocos Estratégicos Induzidos por Retórica Negacionista” (íntegra AQUI – página 214).

“De acordo com o conjunto de evidências reunidas até o momento, a maior incidência de casos graves e óbitos encontra-se entre sujeitos que já sofrem de outras condições crônicas, como obesidade, hipertensão e diabetes, e que pertencem a grupos vulnerabilizados da sociedade, negros, pobres, residentes em áreas urbanas degradadas ou em localidades remotas isoladas, com acesso reduzido a serviços de saúde com qualidade-equidade”, escreve Almeida-Filho logo na introdução do ensaio.

Ele aponta situações semelhantes em países “cujos governos adotam um marco político populista, conservador e autoritário, e cultivam e propagam uma matriz ideológica obscurantista, fundamentalista e negacionista, especialmente no que se refere ao conhecimento científico”. Para o epidemiologista, “a pandemia causada pelo novo coronavírus acentua uma série de problemas gerados pelas desigualdades sociais na saúde dos brasileiros”. 

A tragédia desenha-se, conforme o estudo, quando a pandemia atinge um Brasil retraído pela austeridade fiscal e pela redução do papel do Estado na economia. “Como resultado dos cortes de gastos e das reformas de ajuste neoliberal, principalmente a previdenciária e a trabalhista, ao contrário do crescimento econômico apregoado, tem-se acentuada a situação de desemprego, crise e piora nos indicadores fiscais. A política de austeridade também desfinanciou o Sistema Único de Saúde (SUS) e fragilizou a estrutura de proteção social em um contexto de aumento da pobreza e das desigualdades sociais”, explica Almeida-Filho. 

Sem tanto aprofundamento, muita gente já disse que as medidas de distanciamento e quarentena são praticamente impossíveis de ser seguidas pela população pobre. O professor salienta que “milhões de brasileiros moram em áreas aglomeradas, em casas precárias nas periferias das grandes cidades. Essas pessoas têm dificuldade de permanecer isoladas em casa durante semanas, principalmente porque faltam recursos para tudo: alimentos, aluguel, água, energia”.

A mesma desigualdade se prenuncia agora, quando começa aos trancos e barrancos a campanha de vacinação e nada se projeta no sentido de alcançar prioritariamente as populações mais pobres. No decorrer do processo de imunização as medidas de distanciamento social não poderão ser abandonadas, como já se disse. Nesse ponto, os brasileiros se deparam com outro inimigo, tão danoso quanto o próprio vírus – Jair Bolsonaro.

“O próprio presidente da República e muitos dirigentes oficiais têm promovido a quebra de quarentenas e medidas de distanciamento, incentivando aglomerações e não-uso de máscaras. Além disso, têm encorajado o uso de tratamentos farmacológicos (antimalárico, anti-helmíntico de uso veterinário, remédio contra piolho e sarna, enema retal de ozônio) sem qualquer comprovação de eficácia para a Covid-19. No caso do antimalárico cloroquina, isso indicaria apenas irresponsabilidade, caso não tivesse custado vidas e sofrimento, dado que este medicamento inclusive produz efeitos colaterais fatais”, adverte Almeida-Filho.

De modo irresponsável, denuncia o professor, “o Exército brasileiro fabricou milhões de comprimidos de cloroquina, estoques para décadas de tratamento da malária, muito além da validade do fármaco”, proporcionando a laboratórios aumento de preços e lucros. “No final das contas, o resultado foi o desabastecimento de analgésicos, anti-inflamatórios, anticoagulantes e sedativos, medicamentos essenciais para tratar casos graves de Covid-19 sob terapia intensiva no SUS”.

O estudo de Naomar Almeida-Filho é repleto de dados factuais que comprovam a iniquidade do governo Bolsonaro, e também de governadores e prefeitos, no combate ao novo coronavírus. Para o cientista, “fatores geopolíticos, relações econômicas ou vetores migratórios são capazes de transformar um surto epidêmico numa pandemia, ao tempo em que ondas de informações falsas e decisões políticas equivocadas podem resultar numa ‘pandemia ideológica’, reduzindo a capacidade de uma sociedade controlar a pandemia viral”.

Assim ele encerra o trabalho:

“Mentiras se desmascaram em mais ou menos tempo; mal-entendidos e meias-verdades eventualmente se esclarecem; falácias podem ser desconstruídas (com maior ou menor esforço). Mas é muito difícil combater a retórica política baseada em argumentos que contêm desonestidade e pseudoverdades, supostamente baseadas em evidências científicas, porque o sujeito que as enuncia tem má-fé e quem as propaga age de modo socialmente irresponsável. É preciso denunciar, combater e desmascarar os que a promovem. Se não o fizermos, o preço a ser pago será um gerontocídio anunciado no seio de um genocídio camuflado, numa sociedade que já tem sofrido em demasia com desigualdades, discriminações, iniquidades e injustiças herdadas de sua triste história de colonialismo, escravismo e patriarcado.”

Fonte: Brasil 247