Como e por que as igrejas neo-pentecostais cresceram no Brasil nas últimas décadas
Geraldo Elísio, jornalista, escritor e artista multimídia
Fácil perceber que no governo do Capitão Cloroquina Bolsonaro é forte a presença de evangélicos, notadamente do chamado grupo neo-pentecostal. Aqueles que têm um contato direto com Deus e gerentes bancários. Lógico, o fenômeno não é novo e remonta aos tempos. Como estamos tentando escrever um artigo, não um tratado sobre a questão, fixemo-nos em tempos mais próximos.
A reforma promovida por Martinho Lutero contra a venda de indulgências e lugares no céu, criando a Igreja Reformada, na verdade foi um grande arreglo contrário às praticas do Vaticano, que provocou, junto a outros fatores, o ciclo das grandes navegações e o envio de catequistas em busca da conquista de novos “fiéis” via a Santa Madre Igreja, faltando pouco para arrastar São Francisco de Assis e Santa Clara para os aquecidos clarões das fogueiras da Santa Inquisição.
Por isto, os catequistas viam com naturalidade a matança e a escravidão com barbárie amplificada implantada nas Américas, de indígenas e africanos. Observem que quem reconheceu isso como erro além de mim, outros e outras, dotados(as) de bom senso, foram líderes da sede da própria Cidade Eterna, quando o papa de então, de público. pediu perdão aos descendentes de todas as vítimas.
Na Bíblia, em Mateus 19, um jovem rico aproximou-se do Rabi dizendo querer acompanhá-lo e explicando o seu comportamento de quem era muito endinheirado: “A tudo isso tenho observado. O que me falta?”. Jesus disse a ele: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”. Ao ouvir essas palavras, o jovem afastou-se pesaroso, pois era dono de muitas riquezas. Ainda da Bíblia em Os vendilhões do Templo – João – 2, 13-25“.
“Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam ali sentados. Fez, então, um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas. E disse aos que vendiam pombas: ‘Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio’”.
No primeiro gesto usou de um ensinamento brando. Quanto ao segundo, ficou bravo a ponto de usar o azorrague. Fico pensando se Cristo viesse ao Brasil de hoje, com Edir Macedo, Silas Malafaia, Bolsonaro, Pazuello, apóstolo Waldemiro Santiago e dezenas de outros, como fez em o milagre dos pães, o Criador teria de multiplicar azorragues. A participação desses grupos na política em termos de atualidade não é uma peculiaridade brasileira.
Costa Rica, Colômbia, El Salvador, Guatemala, México, Uruguai e até Venezuela são nações em que o fenômeno toma corpo nos embates políticos. Já em 2018, informa Wagner Fernandes de Azevedo em pesquisa da corporação Latinobarómetro, a população evangélica da região chegava aos 20%.
Envolvendo evangélicos tradicionais, como luteranos, anglicanos, mórmons e os neo-pentecostais, os últimos surgidos no século XX. “Influência de um sistema econômico moldado pelo Ocidente já capitalista e liberal”. Os desdobramentos crescentes se situam a olhos vistos hoje.
E os ditos representantes de Deus, mais do que chicotes, são capazes de pegar mesmo em armas se os “fiéis” não se dispuserem a enfiar as mãos nos bolsos para ampliar contas bancárias decorrentes dos dízimos e vendas de outras quinquilharias, a exemplo de “perfumes com o odor do Cristo”, vassouras para espantar o demônio e outros arsenais de igual monta. O que não ocorre nos Estados Unidos da América do Norte.
Qualquer estudioso da questão não poderá dizer a esse repórter, que é um anarquista filosófico, adepto da teoria formulada pelo professor Aníbal Vaz de Melo, segundo a qual Jesus foi o primeiro dos anarquistas, que eu sou integrante de qualquer ideologia litigante, porém convicto de que não podemos abrir mão da justiça social, independentemente do credo de cada um. Lógico, reconhecendo que os muitos malandros, a não ser diante de impossibilidades reais têm o dever de trabalhar para se manter. O que está muito mais para a história da galinha ruiva do que erudições ideológicas. Quem não trabalha não come. E são várias as formas de trabalhar. Deus nada cobrou de ninguém. Assim sendo, quem foi que disse aos gananciosos, inclusive os messiânicos, que a parte de leão do bolo tem de ser deles. Um economista do porte do atual ministro Paulo Guedes poderia me responder.
Demônios do Norte
Por volta de 1987, o jornalista mineiro Délcio Monteiro de Lima, em livro publicado pela Editora Francisco Alves, buscou explicar o fenômeno religioso exponencial das novas igrejas e expressões religiosas na América Latina. “Na década de 80, começou o intenso declínio de católicos na região. Honduras, Nicarágua, Guatemala, Brasil e Uruguai foram os que apresentaram a maior volatilidade”. Só o Uruguai pendeu ao agnosticismo e ateísmo, tendo os países evidenciado uma transição do catolicismo para as igrejas evangélicas neo-pentecostais.”
O livro do Délcio Monteiro de Lima tem um título forte: “Os Demônios descem do Norte”. Claramente pode-se observar os sinais das mudanças vistas hoje em todas as suas extensões a partir do caso brasileiro, registrados durante estudos realizados no governo de Nixon, um polêmico relatório chamado Rockefeller, de 1969. “A constatação do governo Nixon era de que a Igreja Católica era muito forte no continente e ligada a uma esquerda que desestabilizava a força dos EUA na região”, observava.
A qualificação de “demônios” para a época soaria uma disputa no campo religioso, envergado do viés liberal e capitalista do polo ocidental na Guerra Fria. Hoje, essas igrejas reforçam um novo campo político ascendente, dentro dos países, e disputam o poder no espectro das direitas latino-americanas. “Por assim, os demônios não são as igrejas, nem seus fiéis, mas a pretensa diabólica de instrumentalização dessa fé”.
Com alguma timidez, sempre houve evangélicos no âmbito político brasileiro. Mas este processo passou também de forma mais intensa a existir quando do processo de redemocratização pós 64, com Tancredo Neves disputando o governo de Minas Gerais contra o governista Eliseu Resende. Pouco antes da eleição, realizada em 1982, eu havia chegado à Rádio Itatiaia de Belo Horizonte, então pertencente ao Grupo Januário Carneiro. Um jovem pastor, Mário de Oliveira, de voz bonita e modulada comprou um horário para a divulgação de programas religiosos ligados à Igreja do Evangelho Quadrangular, que logo se tornou dono de grande e crescente audiência.
Isto chamou a atenção dos jornalistas e radialistas Geraldo Ferreira, o “Geraldão”, “Big Boss” da extinta Rádio Cultura de Belo Horizonte, na ocasião empenhado em divulgar a escalada crescente do rock and roll, e, Acyr Antão, especializado em samba e músicas antigas do cancioneiro brasileiro. Acyr até hoje em função, enquanto Geraldão se transformou em saudade.
Os dois descobriram que Mário de Oliveira possuía um vastíssimo arquivo de nomes de fiéis e convenceram Tancredo a receber o pastor em audiência, logicamente informado do tamanho do acervo de endereços que dispunha. Não creio que a intenção deles, Geraldão e Acyr, e, menos ainda, a do doutor Tancredo, tivesse propósitos ligados com o tal projeto norte-americano, mas, sim, em tempos de abertura política facilitar a vida para o oposicionista de São João del Rei, católico fervoroso.
Mário de Oliveira se elegeu como deputado federal por Minas Gerais, nunca mais perdeu e abriu caminho para dezenas de pastores se verem vitoriosos em todos os escalões do mundo político. Oliveira nunca perdeu a discrição e creio que pelo menos por um bom tempo continuou sem saber das visões religiosas de Washington D.C.
Papéis desempenhados hoje por Donald Trump e Steve Bannon, a quem o ex-presidente norte-americano concedeu indulto presidencial, ao perder para Joe Biden. Estrategista da campanha do republicano Trump em 2016, Bannon foi indiciado e chegou a ser preso sob a acusação de desviar dinheiro de campanha para apoio à construção do muro na fronteira entre EUA e México. Entretanto, acabou beneficiado. E ninguém fala deste muro o tanto que se falou do Muro de Berlim. Bannon também é apontado com um dos consultores na eleição de Jair Bolsonaro.
Os princípios norteadores de tal doutrina são mais visíveis na América Central, tendo como maior figura o presidente guatemalteco Jimmy Morales. Ex-comediante durante 15 anos até vencer a eleição de 2015 pela Frente de Convergência Nacional (FCN), declarado extinto pelo Tribunal Supremo Electoral da Guatemala, após ser financiado ilegalmente por empresários do país.
Um dos principais aliados de Jimmy é o “apóstolo” Juan Carlos Eguizábal, líder da igreja Ministerio Internacional Dios es Bueno, espécie de filial da igreja Ministerio Internacional El Rey Jesús, que tem sede em Miami. Administrada pelo pastor Guillermo Maldonado, que em 2016, promoveu o “Encuentro Sobrenatural”, culto contando com a presença de Jimmy Morales e o embaixador de Israel, Mattanya Cohen.
“Jimmy, Cohen e Eguizábal estiveram juntos em outra ocasião emblemática: a inauguração da embaixada guatemalteca em Jerusalém, transferida de Tel Aviv, em maio de 2018, o segundo país a fazer esse movimento, alguns dias depois dos EUA fazer o mesmo ato. A mesma proposta aparece no plano de governo de Jair Bolsonaro.” E os exemplos não param, inclusive na Nicarágua de Ortega, apesar de ele ter outras origens. Foi entrevistado por mim em uniforme de guerrilheiro da Frente Sandinista de Libertação na posse de Sarney, quando foi muito aplaudido ao chegar, dez minutos depois de Buch pai adentrar o recinto representando Ronald Reagan, extremamente vaiado.
Voltando ao Sul da América Latina, até a Venezuela também teve candidato evangélico em disputa eleitoral. Foi nas eleições de 2018, o pastor e líder da Iglesia Cristiana Maranathá Venezuela. Na vizinha Colômbia, as igrejas neo-pentecostais demonstraram força na rejeição ao acordo de paz do Estado com as FARC, em 2016. Uma bancada evangélica surgiu até mesmo no Uruguai, o país menos religioso da América Latina. Disseminados pela América Latina, os neo-pentecostais surgem como projeto de poder via urnas.
Os demônios anunciados por Décio Monteiro de Lima são a vigência da ordem neoliberal legitimada e sustentada pela fé. Bolsonaro et caterva são apenas uma das representações desse modelo a ganhar espaço no terreno. Sorte nossa ele ser tão burro e com a sequência de filhos de 00 a não sei quanto, pobres igualmente em cultura, alavancarem erros fundamentais através da corrupção. O papa Francisco pode ser o apontamento de resistência.
Fonte: Jornalistas Livres