“Mais do que um item de anatomia, a cabeça não se reduz à importância da caixa craniana, que guarnece ao cérebro (…)”

A coluna “Café com muriçoca” é um espaço de compartilhamento literário dos Jornalistas Livres. Hoje a crônica “A cabeça sagrada de Zumbi” de Michel Yakini-Iman

Marcio de Jagun — Orí: a Cabeça como Divindade

Basta fazer uma simples pesquisa na internet sobre Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, para perceber que as fontes registram que ele “foi morto, esquartejado e teve a sua cabeça exposta em praça pública na cidade de Olinda, em Pernambuco”. Até aí nenhuma novidade, pois a guilhotina e a prática de arrancar cabeças como sinal de correção e vitória é comum na história da humanidade e de seus tribunais sangrentos.

Certa vez, numa prosa antiga durante um sarau, o Ogan Márcio Folha Mejecre explicou que existem versões das capoeiranças contando que Zumbi fugiu com uma ligeireza tamanha durante sua caçada e que o exército responsável por capturá-lo decapitou outra pessoa pra validar a destruição do maior quilombo do Brasil.

Nas mitologias sagradas a cabeça também tem uma importância chave, como aparece em alguns dos itans do orixá Ogum, que decepava seus inimigos movido pela ira e pelo senso de vingança, e principalmente pelo culto ao Orí (a cabeça) como representação divina da cultura iorubá.

No livro Orí: a cabeça como divindade, o autor e sacerdote Márcio de Jagun explica que “a cabeça do ser humano é a sede dos sentidos, da inteligência, da memória, do consciente e do inconsciente. É a cabeça que nos move e governa. Sua capacidade intelectual, seu controle emocional e sua tendência à solidariedade ou ao egoísmo traçam o perfil do ser humano”.

Não é à toa que muitas frases que a gente usa no cotidiano pra falar das nossas ações e emoções desequilibradas fazem referência à cabeça como “onde eu estava com a cabeça”, “estou com a cabeça confusa”, ou pra celebrar os equilíbrios, como “hoje acordei com a cabeça boa” ou “aquela pessoa tem um papo cabeça”.

No conceito de Orí nossa cabeça é um elemento fundamental, porque diferente dos demais Orixás, que possuem muitos filhos, o Orí é único pra cada pessoa, ou seja, representa a individuação humana. A máxima de que “é melhor não ir pela cabeça do outros” porque “sua cabeça é seu guia”, faz todo sentido nessa perspectiva.

Meses atrás, percebi que sempre que eu ficava com atenção na louça, numa varrida de chão ou numa caminhada, os pensamentos começavam a ir pro caldeirão das tristezas, até que ao assistir uma live da jornalista Sueide Kintê, ouvi ela dizer do culto ao Orí e perguntei se havia uma obra pra indicar, ela citou justamente o livro de Márcio de Jagun.

Me lembrei que comecei a ler esse livro anos atrás, enquanto eu tava no hospital acompanhando uma internação da Yakini e a Raquel, mãe dela, deixava esse livro pra eu ler nas nossas trocas de turnos. Depois não continuei a leitura, mas como o livro foi soprado novamente, voltei a ler e entendi o motivo: eu precisava concentrar mais preces ao meu Orí.

Passei a fazer isso diariamente e percebi que ando mais aprumado com as intenções, pensamentos, intuições e projeções, senão era capaz de eu continuar “perdendo a cabeça” nas minhas auto-conversas. Talvez, seja por isso que quando alguém deseja eliminar uma pessoa, como foi a intenção na caçada a Zumbi dos Palmares, a cabeça seja um alvo dos mais atacados, pois uma pessoa sem a cabeça, é uma pessoa perdida.

A questão é que Márcio de Jagun orienta que mesmo “após a morte, a cabeça também continua a funcionar. Não exercendo influências na matéria inerte, mas movendo o espírito, vocacionando as ações daquele ente que se tornou imaterial. A cabeça não morre”.

Por isso, Zumbi se tornou um ancestral sagrado, uma cabeça de fundamento que inspira revides, paliçadas, estratégias e identidades que afrontam tudo aquilo que deseja ceifar nossa sanidade e existência, e mesmo que seus algozes tenham tentado decapitar e forjar sua morte, seu Orí quilombola se expandiu no cosmos, reverberando sua eterna memória em nossa consciência .


Michel Yakini-Iman é escritor e produtor cultural. Autor de Acorde de verso (2012), Crônicas de um Peladeiro (2014) e do romance Amanhã quero ser Vento (2018). Atualmente prepara o lançamento do seu novo livro de crônicas intitulado Na Medula do Verbo.

Fonte: Jornalistas Livres