“Ou o vídeo que circula na Internet não é o oficial, ou o depoimento do PM não é correto. Na cena exposta para quem quiser observar, vemos uma poça de sangue perto da porta de entrada, na sala de visitas. Não há dúvidas sobre o ambiente. Não é, definitivamente uma cozinha, conforme descreve o policial”, escreve a jornalista Denise Assis sobre as circunstâncias da morte do ex-PM Adriano Nóbrega
A ditadura – 1964/1985 -, foi pródiga em montar “teatrinhos” para desfazer cenários de mortes dos que a ela resistiam. Muitas foram as alegações de “troca de tiros”, para justificar mortes de presos já sob a guarda da Polícia ou do Exército. Isto, graças à postura do Estado Brasileiro, que sempre se recusou a assumir as graves violações dos direitos humanos perpetradas em suas dependências, quer sejam civil ou militar, resultando na morte e “desaparecimento” de 434 cidadãos, conforme registrou o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade.
Não por acaso, durante 41 anos a Polícia manteve a versão de que foi recebida à bala, na casa onde se escondiam quatro jovens do episódio que entrou para a história como “Chacina de Quintino”, acontecido em 29 de março de 1972, quando quatro militantes da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), estavam reunidos na casa de número 72 da Avenida Suburbana 8.985, em Quintino, na Zona Norte do Rio.
A elucidação do caso só foi possível graças ao trabalho realizado pela Comissão da Verdade do Rio, que conseguiu, resgatar a verdade a partir da revelação – embora tardia – de um dos peritos responsáveis pela autopsia dos corpos. Ele contou à Comissão que foi pressionado para adulterar o laudo que havia escrito, onde apontava a ausência de vestígio de pólvora nas mãos dos jovens abatidos pela Polícia. Tivessem, de fato, trocado tiros, e teriam pólvora nas mãos.
O retorno a este passado se justifica quando há fartas especulações em torno da morte de Adriano Magalhães da Nóbrega, apontado como chefe do “Escritório do Crime”, da comunidade de Rio das Pedras, (Zona Oeste do Rio), próximo da família Bolsonaro, a ponto de um dos seus filhos tê-la empregado. Familiares do miliciano trabalharam no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro, que o condecorou por duas vezes.
Caso tenhamos uma autopsia correta, saberemos se Adriano trocou mesmo tiros, pois se em época de técnicas mais rudimentares foi possível ao médico-legista Valdecir Tagliari atestar que não havia pólvora nas mãos dos guerrilheiros, agora, quando a tecnologia anda a galopes, isto é muito mais fácil de ser comprovado.
Mas, a julgar pela contradição que já grita, entre a reportagem de O Globo de hoje (11 de fevereiro) e o vídeo – levando-se em conta que é verídico – que rola na Internet, mostrando o local, já temos aí um sério indício de que a ditadura deixou vícios incontornáveis no modus operandi da Polícia. Vejamos: na descrição dos repórteres Vera Araújo e Rafael Soares, a abordagem a Adriano, escondido em um sítio em Esplanada, no interior da Bahia, se deu da seguinte forma:
“Perdeu, a gente sabe que você tá aí! Joga a arma pra fora”. Um PM do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Bahia afirmou, em depoimento, que foi assim que tentou fazer com que Adriano Magalhães da Nóbrega se rendesse em uma casa na área rural do município de Esplanada, a 170 quilômetros de Salvador, na manhã de domingo. Atrás da parede de uma cozinha, o miliciano teria reagido com um tiro de pistola – e acabou levando dois, de fuzil.
Aí a notícia carece de exatidão. Ou o vídeo que circula na Internet não é o oficial, ou o depoimento do PM não é correto. Na cena exposta para quem quiser observar, vemos uma poça de sangue perto da porta de entrada, na sala de visitas. Não há dúvidas sobre o ambiente. Não é, definitivamente uma cozinha, conforme descreve o policial. Sendo assim, tudo leva a crer que a morte de Adriano tenha se dado ali, na sala, em frente à porta de entrada. Tal qual aconteceu no passado, quando os policiais invadiam e disparavam.
É possível que Adriano não tenha tido tempo de pegar a pistola no quarto, onde estavam as demais armas e os seus pertences (de acordo com as imagens). É possível que ele a trouxesse na cintura, e a tenha sacado. E se houve ou não tempo de sacá-la, só os peritos vão dizer. Caso queiram descrever no laudo. Em Quintino o desfecho dos três jovens mortos – um dos quatro que estavam na casa conseguiu fugir – ficou guardado por 41 anos. Agora, quando a tecnologia permite maior “vigilância”, talvez a elucidação venha mais rápido. Vai saber.
Fonte: Brasil 247