ARTIGO Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes, do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense Durante anos, Lula alertou que a oposição não tinha raiva de seu governo,…
ARTIGO
Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes, do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense
Durante anos, Lula alertou que a oposição não tinha raiva de seu governo, mas sim raiva de pobre. O presidente dizia que uma elite tacanha tinha raiva que pobre comesse três vezes ao dia, tivesse sua casa, seu carro e embarcasse em avião. Era uma aristocracia egoísta segundo ele, pois mais e mais riqueza não os satisfazia: o que de fato os deixava feliz era olhar pro lado e ver um sujeito na miséria. Diante disso, sou obrigado a admitir que o governo Bolsonaro é excelente em um quesito: confirmar nossos prognósticos mais negativos. A única coisa que não fomos capazes de prever é que tantos ministros competissem pelo posto de sujeito mais repugnante em Brasília.
Paulo Guedes, que tentou se manter discreto durante longo período, decidiu entrar de cabeça nessa disputa. No dia 7 de fevereiro, disparou que os funcionários públicos eram parasitas e foi obrigado a se retratar uma vez que foi criticado por todos, inclusive por quem o pariu. Insatisfeito, e em tentativa desesperada de justificar a alta do dólar, o ministro da Economia decidiu mudar a mira. No último dia 12, quarta-feira, em evento em Brasília, Guedes buscou justificar o descontrole cambial da maneira mais preconceituosa e tacanha possível: “Todo mundo indo pra Disneylândia. Empregada doméstica indo pra Disneylândia. Uma festa danada. Peraí”.
Pudesse eu opinar sobre o fato, defenderia que ninguém fosse pra Disney. O Brasil, de fato, possui lugares belíssimos, sobretudo o Nordeste, como o próprio Guedes lembrou, e eu incluiria os países de nossos irmãos latino-americanos e a própria Cuba, lugar a que nos habituamos a receber convites para viajar só com passagem de ida. A questão, no entanto, não é turística. O ministro preferido de Bolsonaro foi taxativo: há oportunidades, como conhecer Orlando, que não devem ser para todos, a começar pelas empregadas domésticas, tomadas como símbolo da pobreza que deve se resignar com sua baixíssima capacidade de consumir bens e serviços. Essa é a superfície da fala, sem entrelinhas, mas há camadas mais profundas nesse discurso.
Sem exigir demais da memória, lembrei prontamente de duas situações exemplares que ocorreram durante os governos do PT. A primeira se deu no dia 15 de novembro de 2010, quando o jornalista Luis Carlos Prates, da RBS (filiada da Rede Globo em Santa Catarina) foi convidado pelo apresentador a comentar os acidentes nas estradas nos últimos feriados de então. A culpa do número alto de vítimas, segundo Prates, era da popularização do automóvel, e arrematou: “Hoje, qualquer miserável tem um carro”. A segunda, em fevereiro de 2014, envolveu professora Rosa Marina Meyer, que fotografou um sujeito que, segundo seus critérios, estava muito mal vestido para frequentar o saguão do Santos Dumont. Em sua postagem no Facebook escreveu “Aeroporto ou rodoviária?”. O fotografado, Marcelo Santos, era advogado e voltava de um cruzeiro. O caso repercutiu na grande mídia.
Estou muito convicto de que Paulo Guedes não pensou em se insurgir contra as empregadas domésticas como categoria particular, até porque a ida à Disney não era parte da realidade da maioria das trabalhadoras e trabalhadores do Brasil. O que está em jogo é não apenas esse ódio aos pobres que partilha com Rosa Marina Meyer, Luis Carlos Prates e tantos outros, mas o símbolo da ampliação de direitos de toda classe trabalhadora que Guedes e o atual governo tanto condenam. Recorde-se, igualmente, a longa discussão que sucedeu a Emenda Constitucional 72, mais conhecida como a PEC das Domésticas (PEC 66/2012) durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff. Naquela época, todas as forças de atraso da mentalidade senhorial e escravagista vieram à tona, inclusive com argumentos emocionais de pessoas iluminadas que supostamente tratavam as empregadas domésticas como parte da família e que veriam esse laço se dissolver graças à frieza da regulamentação de seu ofício.
É bom que se recorde também, para não ser injusto, que a crítica ao consumo também vinha de setores da esquerda, ainda que por razões diferentes. Não nego certa razão na lógica de que a cidadania e a politização não se dão pela capacidade de acessar bens outrora impossíveis, mas lembro das divergências viscerais que tive com quem bradava a tal “inclusão pelo consumo” como um fato pernicioso, sobretudo vindo de pessoas que jamais experimentaram severas restrições financeiras. Pois bem, agora não temos mais inclusão pelo consumo, mas uma verdadeira “exclusão pelo consumo”, já o ministro Paulo Guedes deixa claro aquilo que todos nós já sabíamos e Lula, insisto, cansou de alertar: para essa direita tacanha que assumiu o poder, há dois tipos de brasileiros, os pobres e ricos, e eles escolheram governar para os segundos.
Imagino que Bolsonaro e sua patota estejam satisfeitos com o atual cenário. De fato, empregadas domésticas não irão à Disney. A classe média, que adorava parcelar em 12 vezes a viagem das férias, também não. O dólar está muito alto, é verdade, mas também não há redução do desemprego, aumento significativo do poder de compra, crescimento da renda, valorização real do salário mínimo e tantas outras conquistas econômicas que poderiam fazer com que os brasileiros viajassem tanto para a Disney como para outros lugares de gosto duvidoso. O Mickey, de fato, se tornou um sonho distante, mas fica o consolo: se quiserem ir ver o Pateta, basta ir a Brasília e bater na porta do Ministério da Economia. Mas vá de ônibus, por favor. Aeroporto é só pra quem pode.
Fonte: Jornalistas Livres