Por Gilvander Moreira

Emancipação, o que é isto? Emancipação não é algo que se faça por decreto e nem de uma só vez no atacado, mas trata-se de algo que envolve a vida toda, um processo permanente que implica desvencilhar-se de todas as formas de alienação, resgatar e cultivar o que há de melhor no ser humano e na História. Nos processos emancipatórios podem ocorrer vários tipos de emancipação: a) emancipação política; b); emancipação econômica; c) emancipação ideológica; d) emancipação cultural; e) emancipação religiosa; f) emancipação humana etc. Melhor dizendo, a ‘emancipação humana’ envolve/busca envolver todas as outras emancipações.

Em História da Pedagogia, Franco Cambi apresenta uma definição interessante de emancipação. Diz ele: “Emancipação é libertação, é tornar-se autônomo, é constituir-se na luta por parte do sujeito, é consciência de uma complexa dialética entre alienação e “redenção”, e é categoria que, com a ética, a política e o direito moderno, inerva também a pedagogia, a qual, teoricamente, se reconhece como guiada, sempre, por um desejo de emancipação (do sujeito, da sociedade) e, praticamente, age (ainda que de forma às vezes contraditória: até conformadora e conformista) para realizá-la” (CAMBI, 1999, p. 218).

Etimologicamente, Autonomia é ‘norma própria’ e heteronomia ‘norma de outro, de fora’. Uma pedagogia de emancipação humana passa por pedagogia da autonomia, conforme ensina Paulo Freire: “O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros” (FREIRE, 2015, p. 58). Autonomia não se delega a outro. “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. […] A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. […] Uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade” (FREIRE, 2015, p. 105). Uma pessoa emancipada se gere por relações autônomas e não heterônomas. Emancipar-se exige (com)viver, (inter)agir, trabalhar e criar se guiando por ‘normas’ próprias, o que implica desvencilhar-se das normas de outro, seja especificamente o patrão que compra a força de trabalho do/a trabalhador/a pagando apenas o mínimo para que a/o trabalhador/a não morra e possa continuar servindo-lhe como mercadoria e produzindo acima de tudo mais-valia, seja obedecendo às normas e leis do modo de produção capitalista imposto pelo capital e pelos capitalistas. “O trabalhador assalariado só tem permissão de trabalhar para sua própria vida, isto é, para viver, desde que trabalhe de graça um determinado tempo para o capitalista. Por isso, também para aqueles que, juntamente com ele, consomem a mais-valia” (MARX, 2012, p. 39).

Aspectos emancipatórios acontecem quando um sem-terra torna-se um Sem Terra, um sem-casa torna-se um Sem Casa, quando descobre que terra é mais do que terra, que casa é mais que casa, que não há um destino predeterminado, mas que ele pode fazer história como sujeito e não está fadado a ser objeto e oprimido sem poder superar a opressão. Algo de emancipação acontece também quando se compreende que “a terra conquistada na luta deixa de ser apenas terra, para ser terra com pessoas buscando encontrar o melhor jeito de trabalhar e de viver nela, o que exige a preocupação com um conjunto bem maior de dimensões humanas, e com um tipo de organização que dê conta delas” (CALDART, 2012, p. 139). Algo de emancipação ocorre quando se descobre que “terra é dignidade, é participação, é cidadania, é democracia” (BALDUÍNO, 2004, p. 25). A terra e a moradia conquistadas apontam para emancipação, porém, se, após a conquista da terra, os Sem Terra recaírem no ‘agronegocinho’, a luta pela terra deixa de ser caminho e jeito de caminhar para emancipação humana. Se após a conquista da moradia acontece um processo de acomodação das pessoas aos ditames do capitalismo: individualismo e apenas luta restrita dentro dos ditames do sistema do capital, o que se conquistou corre-se o risco de se perder gradativamente. “A luta pela terra não está simplesmente em terra por terra, pois a terra é algo sagrado que é muito mais do que terra”, dizia o grande lutador Alvimar Ribeiro dos Santos, agente de pastoral da CPT/MG.

Para os capitalistas, a terra, as águas, as sementes, o ar, as matas, a justiça e o direito são recursos que devem ser explorados sem limite conforme seus interesses econômicos egoístas. Para os camponeses Sem Terra, esses elementos da natureza são dádivas e base da vida, não têm preço e jamais podem ser mercantilizados. Sobre a terra não há uma visão unívoca, pois há muitas formas de se ver a terra. O indígena vê a terra de uma forma, o camponês, de outra forma; o afrodescendente, de outra forma; o fazendeiro, de outra forma; os executivos das empresas do agronegócio veem a terra como mercadoria da qual se pode extrair commodities e, acima de tudo, ampliar a acumulação do capital.

No início da nossa pesquisa de doutorado, em uma Roda de Conversa, no Salão Comunitário do Acampamento Dom Luciano Mendes, dia 21 de setembro de 2014, em Salto da Divisa, ouvindo e dialogando com os Sem Terra da coordenação do Acampamento, fizemos várias perguntas. Incrível a sabedoria e o conhecimento emancipatório que os Sem Terra revelaram. Perguntamos: “O que significa a terra para vocês, camponeses aqui do Acampamento Dom Luciano Mendes, em Salto da Divisa?” O Sr. Raimundo dos Santos foi o primeiro a responder: “A terra é a mãe natureza que nos sustenta. É dela que vem todo o alimento de que precisamos para viver. A terra representa tudo para nós: alimentação, água. Tudo, porque inclusive após a morte vamos para debaixo da terra”. Aldemir Silva Pinto, outro Sem Terra assim se referiu à terra: “A terra foi feita por Deus para todo mundo sobreviver em cima dela, não só gente, mas todos os bichinhos. Uns acabam com a terra, enquanto outros a fazem viver. A terra também morre. Com queimadas ou agrotóxicos se mata a terra. Os poderosos tomaram conta da terra, mas Deus deixou a terra para todos. Muita gente precisa da terra para trabalhar e produzir o sustento de sua família e ajudar a alimentar o povo da cidade”. Por isso, emancipar de tudo que nos aprisiona, aliena e reduz a nossa humanidade para sermos pessoas livres e autônomas, construtoras da nossa própria história, fazendo a diferença no nosso jeito de conviver e lutar, deixando marcas históricas para que as pessoas após a nossa existência terrena possam dizer: “o mundo se tornou melhor, porque fulano/a nele viveu fazendo história”.

Referências.

BALDUÍNO, Dom Tomás. Conferência de abertura do II Simpósio Nacional de Geografia Agrária / I Simpósio Internacional de Geografia Agrária. In: OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; MARQUES, Marta Inez Medeiros (Orgs. ). O Campo no século XXI: território de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Casa Amarela e Paz e Terra, p. 19-25, 2004.

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

CAMBI, Franco. História da pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

12/4/2022.

1 – Luta pela terra incomoda o capital e o Estado – Por frei Gilvander – 18/11/2021

2 – Luta pela terra e pela moradia, com justiça agrária e urbana (Frei Gilvander no Dom Debate) – 21/7/21