Antes de desaparecer na floresta amazônica, o indigenista Bruno Pereira, cujo corpo foi identificado neste sábado (18/06), estava criando as bases para um empreendimento gigantesco: uma trilha de 350 quilômetros que marcaria a fronteira sudoeste do território indígena do Vale do Javari, uma área do tamanho de Portugal.
O objetivo da trilha é evitar que pecuaristas invadam o território Javari, e foi apenas o esforço mais recente de Pereira para ajudar os povos indígenas a proteger seus recursos naturais e estilos de vida tradicionais.
Embora Pereira tivesse perseguido esses objetivos por muito tempo como especialista na Fundação Nacional do Índio (Funai), nos últimos anos ele trabalhava como consultor da organização indígena do Vale do Javari. Isso porque depois que Jair Bolsonaro assumiu o cargo de presidente, em 2019, a Funai passou a adotar uma abordagem menos ativa para proteger a terra e o povo indígena, e o governo passou a promover de forma aberta o desenvolvimento em detrimento da proteção ambiental.
Profundamente frustrado, Pereira deixou a Funai e enveredou por um caminho mais independente – e perigoso.
Ele foi visto vivo pela última vez em 5 de junho em um barco no rio Itaquaí, junto com o jornalista britânico Dom Phillips, próximo à fronteira com o Peru e a Colômbia. Na quarta-feira, um pescador confessou ter matado Pereira, 41 anos, e Phillips, 57 anos, e levou a polícia ao local onde foram encontrados restos humanos, depois identificados como sendo dos dois homens.
Pereira conversou várias vezes com a agência de notícias AP nos últimos 18 meses, inclusive sobre sua decisão de deixar a Funai, depois dele sentir que o órgão havia se tornado um empecilho para seu trabalho. Depois que Bolsonaro chegou ao poder, a Funai ficou repleta de legalistas e pessoas sem experiência em assuntos indígenas, disse.
“Não adianta eu estar lá enquanto esses policiais e generais do exército estiverem dando as ordens”, disse ele por telefone em novembro. “Não posso fazer meu trabalho sob eles.”
Como consultor técnico da associação de povos indígenas do Vale do Javari (Univaja), Pereira ajudou o grupo a desenvolver um programa de vigilância para reduzir a pesca e a caça ilegais em uma região remota onde moram 6,3 mil pessoas de sete grupos étnicos diferentes, muitos dos quais tiveram pouco ou nenhum contato com o mundo exterior. Ele e outros três não-indígenas treinaram indígenas a patrulharem o território usando drones e outras tecnologias para detectar atividades ilegais, fotografá-las e enviar as provas às autoridades.
“Quando se tratava de ajudar os povos indígenas, ele fazia tudo o que podia”, disse Jader Marubo, ex-presidente da Univaja. “Ele deu a sua vida por nós.”
Retirado de cargo após combater garimpo
Assim como Pereira, Ricardo Rao era um indigenista na Funai que, em 2019, preparou um dossiê detalhando o corte ilegal de madeira em terras indígenas no estado do Maranhão. Mas, com medo de ser tão franco sob o novo governo, ele fugiu para a Noruega.
“Pedi asilo à Noruega, porque sabia que os homens que eu estava acusando teriam acesso ao meu nome e iriam me matar, assim como aconteceu com Bruno”, disse Rao.
Bolsonaro defendeu inúmeras vezes a exploração das vastas riquezas das terras indígenas, particularmente seus recursos minerais, e a integração dos povos indígenas à sociedade. Ele comprometeu-se a não conceder nenhuma outra proteção a terras indígenas, e em abril disse que desafiaria uma decisão do Supremo Tribunal Federal, se necessário. Essas declarações se opunham frontalmente às esperanças de Pereira para o Vale do Javari.
Antes de se licenciar do cargo, Pereira foi retirado da chefia da divisão da Funai para tribos isoladas e recentemente contatadas. Isso ocorreu logo depois de ele ter comandado uma operação que expulsou centenas de garimpeiros ilegais de ouro de um território indígena em Roraima. Seu cargo foi logo preenchido por um ex-missionário evangélico com formação em antropologia. A escolha provocou críticas, pois alguns grupos missionários vêm tentando contatar e converter tribos, cujo isolamento voluntário é protegido pela lei brasileira.
Os principais colegas de Pereira na Funai ou seguiram o seu exemplo e deixaram o cargo, ou foram movidos para posições burocráticas longe da demarcação de terras protegidas, de acordo com um relatório recente do Instituto de Estudos Socioeconômicos e da organização Indigenistas Associados, que inclui atuais e antigos funcionários da Funai.
“Dos 39 escritórios de coordenação regional da Funai, apenas dois estão chefiados por funcionários da Funai”, diz o relatório. “Foram nomeados militares, três policiais, dois policiais federais e seis profissionais sem experiência prévia com a administração pública”, sob Bolsonaro.
O relatório de 173 páginas, publicado na segunda-feira, diz que muitos dos especialistas da agência foram exonerados, injustamente investigados ou desacreditados por seus superiores enquanto tentavam proteger os povos indígenas.
Em resposta a perguntas da AP sobre as alegações do relatório, a Funai disse em uma nota por e-mail que opera “com estrita obediência à legislação atual” e não persegue seus funcionários.
Pesca ilegal no foco da investigação
No dia em que desapareceram, Pereira e Phillips dormiram em um posto avançado na entrada da principal rota clandestina para o território, sem passar pela base permanente da Funai na entrada, disseram os moradores locais à AP.
Dois patrulheiros indígenas afirmaram à AP que a dupla estava transportando telefones celulares do projeto de vigilância com fotos de lugares onde pescadores ilegais haviam estado. As autoridades disseram que uma rede de pesca ilegal é um foco da investigação sobre os assassinatos. A polícia disse em uma declaração neste sábado que a morte de Pereira foi causada por três ferimentos de bala, dois no abdômen e um na cabeça, com munições típicas de caça.
Pereira não foi a primeira pessoa ligada à Funai a ser morta na região. Em 2019, um agente ativo da Funai, Maxciel Pereira dos Santos, foi morto a tiros enquanto dirigia sua moto na cidade de Tabatinga. Ele havia sido ameaçado por seu trabalho contra pescadores ilegais antes de ser assassinado. Esse crime ainda não foi esclarecido.
A morte de Pereira não impedirá que o projeto de demarcação da fronteira do território Javari avance, disse Manoel Chorimpa, membro da Univaja envolvido na empreitada. Em outro sinal de que o trabalho de Pereira seguirá, os esforços de vigilância dos patrulheiros indígenas começaram a levar à investigação, prisão e denúncia de infratores da lei.
Antes de sua carreira na Funai, Pereira trabalhou como jornalista. Mas sua paixão por assuntos indígenas e idiomas – ele falava quatro – levou-o a mudar de carreira. Sua esposa, a antropóloga Beatriz Matos, incentivou-o em seu trabalho, mesmo que isso significasse longos períodos de afastamento de sua casa em Atalaia do Norte e de seus filhos. Mais recentemente, eles estavam morando em Brasília.
O povo indígena da região considerava Pereira como um parceiro, e uma foto antiga amplamente compartilhada em redes sociais nos últimos dias mostra um grupo deles reunidos atrás de Pereira, sem camisa, enquanto ele mostra algo em seu computador. Uma criança se inclina suavemente sobre seu ombro.
Em uma declaração na quinta-feira, a Funai lamentou a morte de Pereira e elogiou seu trabalho: “O servidor deixa um imenso legado para a política de proteção de indígenas isolados e de recente contato, área em que se tornou um dos principais especialistas no país e que atuava com extrema dedicação.”
No entanto, antes de os corpos de ambos terem sido encontrados, a Funai havia emitido uma declaração acusando Pereira de violar um procedimento ao ficar no território Javari mais tempo do que o autorizado. Isso levou os servidores da Funai a entrarem em greve, alegando que a agência havia difamado Pereira e exigindo que seu presidente fosse demitido. Um juiz na quinta-feira ordenou que a Funai retirasse do seu site a declaração “incompatível com a realidade dos fatos” e parasse de desacreditar Pereira.
Rubens Valente, jornalista que vem há décadas cobrindo assuntos da Amazônia, disse que o trabalho de Pereira ficou inerentemente mais arriscado depois que ele sentiu a necessidade de trabalhar de forma independente.
“Os ladrões de peixe viam Bruno como uma pessoa frágil, sem o status e o poder que a Funai lhe deu na região onde foi coordenador da Funai por cinco anos”, disse Valente. “Quando os criminosos perceberam que Bruno estava vulnerável, ele tornou-se um alvo ainda maior.”
bl (AP)