- Ashley Winchester
- BBC Travel
Era 4 de julho, e eu estava assistindo à bandeira americana ser hasteada por homens fardados, enquanto um cantor de música country, de chapéu e botas de cowboy, tocava o hino nacional. A cena foi seguida por um momento de oração, pedindo a Deus que abençoasse o presidente dos EUA. Foi a deixa para a banda formada por membros do Exército americano começar a tocar a canção patriótica God Bless America, e todos cantarem juntos em uma só voz.
Se eu estivesse em qualquer lugar dos EUA no Dia da Independência, essa cena poderia fazer sentido. Mas eu estava a cerca de 7,4 mil km de distância, nas montanhas do norte da Dinamarca. E lá a paixão do sonho americano se misturava com o hygge dinamarquês — termo local que descreve sensação de conforto e aconchego — de um típico piquenique em família no parque.
É o Rebild Festival — sem dúvida a maior celebração do Dia da Independência fora dos EUA. A comemoração improvável atrai desde 1912 milhares de pessoas vestidas de vermelho, branco e azul para a região de Rebild, município a cerca de 30 km ao sul de Aalborg, na Dinamarca.
Mas por que a Dinamarca? Esta é uma história que remete à nostalgia de uma época em que deixar a Europa com destino aos EUA significava dizer adeus a amigos, à família e ao país — em geral, para sempre.
No fim do século 19 e início do século 20, houve um êxodo em massa de dinamarqueses para os EUA. Esses emigrantes partiram em busca de melhores condições de vida e atrás dos Mórmons, movimento religioso americano que levou milhares de dinamarqueses a se converterem.
A Rebild National Park Society, grupo dinamarquês-americano que organiza o Festival Rebild, estima que cerca de 300 mil pessoas deixaram a Dinamarca rumo aos EUA até 1912.
“Muitos deixaram a Dinamarca em tempos difíceis. Eles vieram para a América, e alguns aproveitaram essa liberdade e oportunidade para ser alguém na vida, e se sentiram muito orgulhosos e gratos à América”, explica Niels Voigt Guldbjerg, presidente do Danish American Club na Dinamarca, que morou nos EUA por 32 anos.
“Eles estavam tão longe naquela época que quando voltavam para a Dinamarca, tinha um significado maior, e eles amavam tanto a América porque os EUA tinham dado a eles a oportunidade que não tiveram no seu país.”
Um desses emigrantes era Max Henius, um bioquímico que se estabeleceu em Chicago e fundou a bem-sucedida American Brewing Academy, ensinando a arte da fermentação no estilo europeu aos cervejeiros locais antes de a Lei Seca entrar em vigor em 1920.
Se voltar à Dinamarca era uma jornada rara, cara e demorada (de várias semanas de navio) para esses migrantes, aqueles que fizeram fortuna no exterior se sentiam particularmente motivados a voltar e reconhecer tanto a importância de suas origens, quanto às oportunidades que os EUA tinham proporcionado a eles.
Foi este grupo de “novos americanos”, liderados por Henius, que comprou um terreno de 80 hectares no norte da Dinamarca, para servir como um local de boas-vindas a todos os dinamarqueses-americanos. Eles doaram o terreno ao rei dinamarquês Christian 10º, que por sua vez criou o Rebild Bakker (Parque Nacional Rebild) como um refúgio natural para todos os dinamarqueses. Mas a doação veio com uma contrapartida.
Todos os anos, Henius insistiu, o parque deveria realizar um festival comemorando o Dia da Independência dos EUA, como um símbolo da amizade entre os dois países. O parque nacional também serviria como um local onde os dinamarqueses americanos que regressassem poderiam se sentir sempre em casa, seja se encontrando com parentes ainda na Dinamarca ou celebrando o sonho americano com amigos que seguiram a mesma trajetória.
O resultado, hoje, é uma miscelânea de tradições que contempla a paixão dinamarquesa pela cantoria e aquavit, bebida destilada de origem escandinava.
Em sua inauguração em 1912, debaixo de chuva, o Rebild Festival reuniu mais de 10 mil pessoas no parque — sendo que 1 mil encararam uma longa jornada de navio dos EUA para celebrar suas origens, de acordo com a Rebild National Park Society.
No auge do pós-guerra, em 1948, a celebração atraiu cerca de 50 mil pessoas. Entre as presenças notáveis ao longo dos anos, estão: o juiz da Suprema Corte dos EUA, Earl Warren (1955); Walt Disney (1961); o ex-presidente dos EUA Richard Nixon e o rei dinamarquês Frederik 9º (1962); a seis vezes ganhadora do Grammy Dionne Warwick (1988); o ator americano Richard Chamberlain (1990); e a procuradora-geral dos EUA, Janet Reno (1994).
Hoje, o festival da amizade se transformou em uma celebração de quase uma semana de confraternizações, festas de gala e solenidades em toda a região de Rebild, que continua a fortalecer os laços que unem os dois países. É um lugar em que todas as pessoas interessadas nos EUA, quer tenham estado lá ou não, podem se reunir e comemorar.
No almoço de abertura do 4 de julho de 2019, conheci Helle Agerbak Lyngaa, uma fã do festival de 52 anos que foi vestida da cabeça aos pés com adereços patrióticos, como destaque para o arco na cabeça com a bandeira americana e a camiseta com a inscrição “Made in America” —embora ela seja 100% dinamarquesa.
Ela sentou à minha mesa e logo fez amizade com quem estava sentado ao nosso redor: uma porção de recém-chegados; um homem que participa do evento todos os anos desde 1948; e três gerações de dinamarqueses apaixonados pelo Rebild Festival.
“Você precisa encontrar algumas almas gêmeas, que é o que fazemos aqui”, diz ela.
“[O almoço] é a principal coisa, a cereja do bolo”, acrescenta Lyngaa, que frequenta o festival desde os cinco anos de idade e é membro de longa data do Danish American Club e da Rebild Society.
“Mas acho todos os outros eventos [nas semanas que antecedem o festival de 4 de julho] tão importantes quanto, porque é quando você consegue fazer as amizades.”
“Isso tem muito a ver com tradição. Muitos dinamarqueses-americanos que voltam para casa estão em busca de memórias — e vêm porque anseiam pelo o que deixaram para trás. Ainda há esse anseio por tradição”, acrescenta.
O almoço, um banquete de duas horas de pratos típicos dinamarqueses, como arenque em conserva, smorrebrød (espécie de sanduíche aberto) e Aalborg (bebida destilada), foi marcado por brindes, canções e um pouco de formalidade, quando um grupo de americanos e dignitários locais foi homenageado por suas contribuições às festividades.
“Houve uma época nos EUA em que as pessoas não estavam tão interessadas em suas origens e herança cultural, e tentavam não falar sua língua nativa em casa”, diz o americano Ed Bladt, presidente do Rebild no Vale do Delaware.
Embora viva nos EUA e seja americano, Bladt é casado com uma dinamarquesa, fala dinamarquês em casa, e as primeiras palavras que seus filhos e netos falaram foram “skål”, saudação feita ao brindar, como “saúde”.
Ele foi homenageado no ano passado com vários prêmios, inclusive sendo proclamado prefeito por um dia de Aalborg, cidade natal de Henius, em reconhecimento por seus esforços na promoção das relações dinamarquês-americanas.
Agora, diz Bladt, há um interesse renovado na herança cultural, talvez por causa da presença da tecnologia que facilita manter conexões fortes.
“Quando você chega à Dinamarca, todo mundo quer que você vá visitá-lo, e nem sempre você consegue porque é muita gente, então vamos ao Rebild”, conta Bladt.
“Rebild é um lugar onde podemos nos reunir e encontrar [com todos os amigos e parentes dinamarqueses de uma só vez].”
Embora o evento de 2019 tenha sido frio e úmido, centenas de pessoas saíram da tenda do almoço e subiram a trilha marcada por bandeiras americanas até a principal atração nas colinas do parque.
Fomos saudados com a cerimônia de hasteamento das bandeiras dos EUA e da Dinamarca e uma oração em dinamarquês enfatizando os laços entre os dois países. Outros discursos se seguiram, entre cantorias de músicas dinamarquesas tradicionais e uma versão de God Bless America.
A cena foi surreal. Eu estava diante da bandeira americana, enquanto tremia de frio debaixo de um dilúvio. Mas para os dinamarqueses, assim como para aqueles que compareceram à primeira edição do festival, aquilo não era nada. Um ditado popular na Dinamarca diz que: “Não existe tempo ruim, só roupa inadequada”. E foi o que eu constatei, uma vez que havia cerca de mil pessoas naquele evento ao ar livre após o almoço no parque.
Embora o número de participantes possa ter diminuído desde a época de Henius — atraindo aproximadamente 2 mil pessoas em anos ensolarados, e 7,5 mil no 100º aniversário do evento em 2012, segundo o secretário-geral da Rebild National Park Society, Lars Bisgaard — a paixão por tudo o que é americano continua forte.
“Acho que a cultura é, de certa forma, como a moda. Em 20 ou 30 anos, as tendências mudam, e acho que elas voltam, é apenas uma questão de atrair as pessoas”, avalia Lyngaa.
“Acredito que a Rebild [National Park] Society ainda estará presente nos próximos 100 anos, talvez não da mesma forma e no mesmo formato, mas estaremos sempre por aqui. Ansiamos pela aventura do sonho Americano, e os americanos anseiam por sua tradição e raízes na Dinamarca. Isso sempre vai estar presente.”
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