Saber reconhecer o que nos atemoriza é um passo que vai nos ajudar a encontrar estratégias para enfrentar os obstáculos do viver

Você sabia que esse sentimento tem a princípio a função de nos proteger?

Vamos imaginar a seguinte situação: você, sozinho dentro de um carro, em uma estrada deserta e, de repente, o pneu do carro fura. Você desce para trocar. Em minutos estão ali pelo chão esparramados o pneu reserva, o carro já elevado no macaco, porta-malas aberto, as malas também pelo chão e você bem confuso com tudo aquilo, já que não é todo o dia que se troca pneu.

O dia é de muito calor e não há nenhum ventinho capaz de sacudir uma única folha sequer, a estrada vazia e o silêncio reinando. Eis que um ruído vindo de trás de você chama sua atenção. Você se vira para olhar e, pasme, a menos uns 15 metros há um búfalo com aqueles ameaçadores chifres circulares grossos como jiboias ao lado das orelhas, as narinas soltando ruídos ameaçadores e uma pata dianteira puxando o chão para trás repetida e furiosamente, pronto para atacar o que supõe ser um inimigo: você. Justo você que não quer confusão com ninguém!

O que você faria caso o medo não o alertasse que ali existe uma situação de extremo perigo? De que forma você acha que sairia dali, se seu corpo não fosse impulsionado instantaneamente a reagir? Se essa situação ocorresse realmente, possivelmente você correria para pular dentro do carro e ficaria lá, tremendo, até ter alguma ideia. Mas e se não fosse esse medo salvador? Possivelmente você ficaria parado e acabaria morto.

Enfrentando perigos

Para enfrentar os perigos que surgem inesperadamente e que nos causam medo, uma parte do nosso psiquismo primitivo, responsável por nos defender da morte, é acionado. Trata-se de uma parte que existe em cada um de nós e que remonta à nossa ancestralidade, que nos acompanha desde que nos locomovíamos em quatro apoios e ainda não éramos sapiens.

Como ferramenta de proteção, o medo pode nos impulsionar para o enfrentamento, ou nos paralisar, caso tome uma proporção de pânico. É nesses momentos de choque que o estresse vai se configurando e dando sinais físicos, fazendo com que não tenhamos forças para reagir às diversidades.

Cada um reage de uma forma às suas inseguranças, com raiva, tristeza, desânimo. Mas o medo faz parte desses sentimentos desagradáveis e precisamos admiti-lo para que se possa reconhecer o que tememos. Afinal, podem esses perigos ser reais ou do campo do imaginário. Mark Twain, o escritor americano do século 19, disse certa vez: “sofri por medo de muitas coisas na vida, a maioria delas nunca existiu”.

Medo do desconhecido

Diferentemente da ilustração com o búfalo, na qual uma situação concreta exigiria uma reação rápida como forma de preservação da vida, muitas vezes nossos medos são causados por coisas como uma dificuldade de encarar o novo, o desconhecido, por exemplo. Tendemos a querer que tudo fique como está, pois desta forma sentimos que temos o controle e estamos familiarizados com os resultados. No entanto, quando novas circunstâncias surgem modificando todo o panorama que já nos é familiar, nasce o medo do desconhecido, daquilo que não fazemos a mínima ideia de onde pode nos levar. O novo nos tira da situação confortável e exige de nós um movimento. Nem sempre somos capazes de planejar, programar ou prever os acontecimentos, pois não temos o controle de tudo, aliás somos atravessados o tempo todo por situações que não dependem somente de nós. Vivemos em sociedade e isso implica considerar os desejos alheios além dos nossos. Porém, seguimos achando que tudo será como idealizamos. Ledo engano.

As religiões por vezes prometem, e gostamos de acreditar em uma vida determinada com caminhos aparelhados, mas o fato é que o amanhã é incerto e a vida não é estanque. Saber reconhecer o que nos atemoriza é um passo que vai nos ajudar a encontrar estratégias para enfrentar os obstáculos do viver. Contudo, tal processo vai exigir de nós uma boa dose de investimento em autoconhecimento, e só assim cada poderá vislumbrar quais habilidades terá que desenvolver para seguir em frente, mais fortalecido.


Lilian Tavares é psicóloga e gerontóloga social, especializada em Saúde Mental. Faz parte do projeto Psicologia Solidária que atende de forma voluntária profissionais de saúde que enfrentam a pandemia do coronavírus em todo o Brasil

Fonte: RBA