Falecido no dia 15 de abril, escritor manteve estreitas relações com militares nos anos 1960
Por Sérgio Barbo*
Artífice do romance policial no país, escritor e roteirista agraciado com os prêmios Jabuti, Camões e Kikito e autor inovador e influente dentro da literatura brasileira, o recém-falecido Rubem Fonseca também foi, textualmente, um golpista.
Caso considere-se sua participação como um “retórico” da propaganda antiesquerdista que minou intensamente o governo de João Goulart, o escritor mineiro teve papel importante nas ações que culminariam no golpe civil-militar de 1964.
Antes de ser escritor, Rubem Fonseca foi vendedor ambulante, policial de gabinete diplomado em direito e treinado nos Estados Unidos (função que lhe serviu de estofo criativo para seus contos), relações públicas da companhia canadense Light e, finalmente, coordenador do IPÊS (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais).
Fundado logo após a renúncia de Jânio Quadros, em novembro de 1961, por empresários brasileiros (entre eles, Antônio Gallotti, da Light) e entidades de classe e financiado parcialmente pela CIA, o IPÊS – ao lado do precursor IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) – foi fundamental para a construção de um clima favorável à deposição de Jango. Dirigido pelo então coronel Goubery do Couto e Silva (futuro criador do SNI), o instituto tinha como função principal “a defesa da democracia”, pregando aspectos positivos do capitalismo e simultaneamente coordenando oposição política ao trabalhista Goulart.
Foi o historiador uruguaio René Dreifuss quem revelou, em seu livro 1964: A Conquista do Estado, Ação Política, Poder e Golpe de Classe, que Fonseca supervisionava a unidade ideológica e editorial do material de divulgação do IPÊS.
Levado à instituição por Gallotti, Fonseca era responsável pela redação ou revisão dos panfletos, apostilas e roteiros de cinejornais distribuídos e exibidos por todo o país, de favelas a cinemas e igrejas de pequenas e grandes cidades. As colegas Rachel de Queiroz e Nélida Piñon também contribuíram para redação de textos.
“Rubem assinou várias atas de reuniões do instituto. E se não escrevia tudo, ele revisava ou alterava os roteiros dos filmes”, afirmou à Fórum Gabriel F. Monteiro, pesquisador e diretor de O Prólogo, documentário que enfoca a propaganda política que antecedeu o golpe de 1964.
Desestabilizar o governo
Segundo a historiadora e pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade, Joana Monteleone, Rubem Fonseca foi um dos principais elos entre empresários, militares e jornalistas. “Ele coordenava uma assessoria de imprensa que pautava textos jornalísticos para desestabilizar o governo. Esse material era fartamente reproduzido na mídia, como no Repórter Esso”, relatou à reportagem.
Tal material contribuiu para criar um clima de pânico na população conservadora diante de uma suposta “ameaça comunista”. O IPÊS forneceu suporte ideológico à famigerada Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 19 de março de 1964, que desencadeou definitivamente a queda de Jango.
A contribuição do IPÊS foi além do golpe: o conjunto documental reunido em pesquisas do instituto serviu de base de informações para o SNI, o temido Serviço Nacional de Informação do regime militar. “O IPÊS documentou, por exemplo, quem eram os personagens de esquerda, como Paulo Freire”, diz Gabriel F. Monteiro.
Admirado por Golbery, o futuro escritor foi favorecido diretamente pelo IPÊS. Por meio de suas reuniões, Fonseca conheceu seu primeiro editor, o integralista Gumercindo Rocha Dorea, diretor da Editora GRD, que publicou seus dois primeiros livros: Os Prisioneiros (1963) e Coleira de Cão (1965).
Já como celebrado – e recluso – escritor, Rubem Fonseca jamais assumiu sua figura de militante de direita. Numa rara entrevista ao Fantástico, em 2001, o autor dizia não se lembrar de ter redigido roteiros, mas admitia ter participado do instituto até março de 1964, quando, por discordância, deixara o cargo.
“Ele atuou no IPÊS até o final, em 1972”, afirma Joana. “O instituto acabou por problemas financeiros e brigas internas. Mas o motivo do fim foi por terem atingido seus objetivos, com o golpe”, conclui.
No ano seguinte ao fim do IPÊS, Fonseca publicou seu primeiro romance, O Caso Morel. Em 1975, seu livro de contos Feliz Ano Novo foi proibido pela censura do regime militar (por conter “excesso de palavrões” e “matéria contrária aos bons costumes”).
Curiosamente, várias de suas obras foram censuradas recentemente em Rondônia, num momento em que o atual governo federal é, ironicamente, tributário da ditadura.
*Sérgio Barbo é jornalista
Fonte: Revista Fórum