O quadro Guernica, de Pablo Picasso, lembra a destruição, em 1937, da cidade basca, no Norte da Espanha, por bombardeios alemães. O crítico de arte Robert Rosenblum analisa a obra: "Ela equivale a uma imagem do fim do mundo, sobretudo do mundo moderno, como o conhecemos. Um clarão ofuscante de chamas, em seguida a sensação do caos definitivo. Mulheres e crianças gritando, um touro, um cavalo, uma visão de choque e trauma que representa todo o nosso pavor à beira do abismo. Assim é o quadro Guernica: da forma mais impressionante e poderosa, ele anuncia a mensagem da guerra, do potencial destrutivo do século 20"


26 de abril de 1937. Até então, a cidadezinha basca de Guernica permanecera praticamente intocada pela Guerra Civil Espanhola. Mas com o fracasso da tomada da capital Madri,  entrou na mira dos fascistas liderados por Francisco Franco, futuro ditador que contava da Alemanha e Itália. No final daquela tarde, bombardeiros de aviões alemães reduziram-na a cinzas. O ataque aéreo de três horas matou 1.645 pessoas.

O pintor espanhol Pablo Picasso captou esse horror em seu quadro antibélico Guernica, realizado logo após o massacre. Conta-se que um oficial da SS lhe perguntou, apontando para a pintura “Foi o senhor que fez isso?”. Picasso respondeu: “Não, o senhor”. (Com informações da Deutsche Welle)

A noite das facas falsas

Circunstâncias de vida, ressentimento, fracasso profissional, círculos de amizade, profissão e outras esferas da existência predispõem uma pessoa a aderir ou não. Todavia, não resta dúvida: um militante fascista não pretende mais agir como ser humano.

por Lincoln Secco, em A terra é redonda

“Não há outro meio de acabar com o communismo senão acabando de vez com a democracia liberal, terreno propício ao desenvolvimento de todos os micróbios virulentos” (Miguel Reale, agosto de 1935)[1].

Entre 11 e 12 de outubro de 2019 a cidade de São Paulo sediou a Conferência da Ação Política Conservadora[2].

Tenho ao meu lado o jornal Folha de São Paulo impresso. A data é 14 de outubro de 2019.

Numa das fotografias da matéria está o deputado federal Eduardo Bolsonaro abraçado a um mastro com uma bandeira do Brasil. Ele sorri, meio curvado, aparentemente simulando uma pole dance.

Deixemos de lado toda a associação do fascismo com a questão sexual segundo Reich; com as marchas militares em seu movimento erótico como pensava uma personagem de Sartre no romance Com a morte na alma (Nova Fronteira) ao ver os conquistadores alemães em Paris; e mais especificamente a ligação com o sadomasoquismo lembrada por Susan Sontag.[3]

As fontes

A matéria é aterrorizante. O deputado é apresentado como sucessor do seu pai. Mil pessoas gritam-lhe: “Mitinho”.

Em dois dias de reunião o deputado fez um show, afinal “fascismo é teatro” disse Genet.

Num átimo o deputado atacou mulheres de “sovaco cabeludo” e, em seguida, ninguém sabe o porquê, revelou que seu apelido de infância era Buba, em alusão a uma personagem hermafrodita de uma telenovela.

Além dele, ministros bolsonaristas fizeram suas exposições.

A conferência, bancada com recursos do fundo público partidário, restringiu-se mais à ação (como consta no nome) do que à reflexão.

Entre os palestrantes houve denúncias contra o “climatismo”, embora as matérias não tivessem feito referência à presença de Lorenzo Carrasco, autor mexicano de Máfia verde, livro de cabeceira de fazendeiros.

Feito em nome da classe média, conforme “aula de História” do Ministro da Educação, o encontro serviu para denunciar a esquerda totalitária.

Entre muitas reportagens, a de Rafael Carriello para a revista Piauí (13out2019) é igualmente assustadora, tal o número de detalhes que parecem sair diretamente do esgoto da subcultura fascista brasileira.

No entanto, depois de abrir a tampa da fossa, o jornalista se apressa em dizer que “nem de longe a intolerância política no Brasil foi inventada pelos bolsonaristas”.

As “provas” seriam um vídeo de Marilena Chauí em que afirma que a classe média é uma “aberração” e a campanha de Dilma Roussef contra Marina Silva em 2014.

Ou seja, o jornalista, sem o saber, talvez sem o querer, corroborou a afirmação do encontro conservador: a esquerda (sim, aquela representada pelo PT que jamais sonhou com qualquer Revolução) seria de fato “totalitária”.

Conferências e noites

Enquanto a conferência transcorria, a noite das facadas (falsas) acontecia.

No interior do partido fascio lumpem evangélico que apoiava o presidente a luta era pelo controle da sigla e do seu fundo financeiro.

As frases dos expoentes não mereceriam registro histórico se o acaso ou a conjuntura não os tivessem alçado ao poder.

Para o Delegado Valdir “Eu sou o cara mais fiel a esse vagabundo”.

Para Felipe Francischini: “ele começou a fazer a putaria”.

Já o filho Carlos Bolsonaro, o chefe da SS digital do mito, postou as imagens de um porco, um rato, uma cobra, uma galinha e uma lula para atacar a ex-aliada Joyce Hasselmann que respondeu com três veados e três ratos.

Para apimentar a noite das facas falsas, o mito disse que o presidente de seu partido, Luciano Bivar estava “queimado”.

Por incrível coincidência o deputado foi alvo de uma operação da Polícia Federal que investigava o lançamento de candidaturas laranjas pelo partido no estado de Pernambuco.

A mando do ministro que faz as vezes do diretor do Gabinete Central de Segurança do Reich, SS-Obergruppenführer Reinhard Heydrich.

A Noite das Facas Longas foi um expurgo efetuado na noite de 30 de junho de 1934, quando a facção de Adolf Hitler do Partido Nazista eliminou seus adversários como Gregor Strasser e o capitão Ernst Röhm, líder da SA (Sturmabteilung).

Depois disso as tropas de assalto nazistas ficaram em segundo plano perante a SS (Schutzstaffel).

A Noite dos Cristais foi o ataque aos judeus (pogrom) de 9/10 de novembro de 1938, promovido pelo governo nazista.

Já a Conferência de Wannsee aconteceu em Berlim, a 20 de janeiro de 1942 para decretar a solução final da “questão judaica”.

Nenhuma dessas noites tem paralelo com o que se passou no Brasil.

Uma facada pode ser fake e aqui a “raça” não é apenas “biológica”, mas partidária: o PT, sinédoque de um vasto campo político e cultural do qual essa sigla faria parte.

Como explicar o inexplicável?

Em 1930 August Thalheimer escreveu um artigo em que reconhecia a ausência de uma teorização “definitiva” do fenômeno fascista.

Naturalmente, Marx e Engels não assistiram a nada parecido.

Contudo, a análise que Marx faz em O 18 Brumário poderia servir como ponto de partida.

O bonapartismo é diferente do fascismo, porém expressa o mesmo processo pelo qual a burguesia abandona sua sobrevivência política nas mãos de um ditador para salvar sua existência econômica.

Sua base de massas é fornecida principalmente por uma classe (média) sem um papel decisivo na produção. Essa classe se vê como a mediadora das classes fundamentais, diz Thalheimer.

E exatamente por isso adota o nacionalismo e se considera a representante única do interesse nacional e de valores desinteressados contra o mau operário (“petista”, em nosso caso), o mau capitalista (os bilionários, os financistas, os que recebem crédito estatal) e poderíamos acrescentar hoje más mulheres, maus ambientalistas etc.

Há decerto as boas mulheres do lar, os bons capitalistas produtivos e os trabalhadores sem direitos que não reclamam.

Thalheimer diz que

“o pequeno burguês fascista quer um governo forte. Governo forte significa ampliação do funcionalismo. Mas ele exige ao mesmo tempo uma economia dos gastos públicos, isto é, uma limitação do funcionalismo (…). É preciso acabar com o abuso do dia de oito horas e com o disparate dos direitos do operário na fábrica. Ordem na fábrica! Que se termine com o presente do Estado aos trabalhadores à custa do pequeno burguês, como o pão e os aluguéis baratos etc”[4].

Thalheimer parte da definição do IV Congresso da Internacional Comunista: a diferença específica do fascismo está no fato de que os fascistas “tratam, mediante uma demagogia social, de criar uma base entre as massas, na classe camponesa e na pequena burguesia e até em certos setores do proletariado, utilizando habilmente para seus objetivos contrarrevolucionários decepções provocadas pela chamada democracia”.

Ele percebeu aquilo que Gramsci já havia enunciado num artigo chamado “A Crise Italiana”[5]: não existe uma essência do fascismo no próprio fascismo. Se procurarmos definir uma não alcançaremos uma compreensão racional.

Não há uma doutrina fascista coerente. Os fascistas agem no senso comum sem jamais alçar a esfera da Filosofia.

Por isso não pode haver um debate com um fascista na mesma medida em que pode existir um entre socialistas e liberais.

Grandes pensadores podiam aderir ao nazismo, mas não concorreram para transformá-lo em uma filosofia; ao contrário, só conseguiram se revelar pessoas degeneradas e imbecis durante a vigência do regime fascista.

Carl Schmitt era um intelectual importante. Criticava os liberais por verem concorrentes no comércio e meros opositores numa discussão, em vez de inimigos[6].

Mas não é essa visão teórica que explica sua adesão ao nazismo. Nem todo anti-liberal compactuou com aquilo.

Schmitt o fez porque antes de intelectual era um ser humano como qualquer outro e na raiz de sua decisão havia sentimentos mesquinhos e desejos inconfessáveis, evidentemente adornados por um nacionalismo e pelo inconformismo com o fracasso da Alemanha, com a incompetência dos políticos de Weimar e o que mais se quiser encontrar.

Quando Martin Heidegger foi convidado pelos estudantes nazistas de Heildeberg a proferir um discurso, os catedráticos conservadores compareceram paramentados em seus trajes oficiais enquanto, para espanto geral, o grande filósofo da Alemanha surgiu com calções curtos e colarinho de Schiller, o uniforme da juventude nacional socialista[7].

Parecia tão inexplicável que um de seus biógrafos gastou muitas páginas tentando mostrar como em sua filosofia havia elementos para que Heidegger visse na vitória de Hitler em 1933 o momento em que os alemães saíram da caverna platônica. Seria o convite primordial do Dasein e o sinal da revolução metafísica inacabada, entre outras tolices.

Benedetto Croce simplesmente resumiu o discurso de Heidegger como “tolo e servil”[8].

O fato é que não há nada em filosofia alguma que possa ser fascista e ao mesmo tempo tudo, retirado de qualquer lugar, pode servir ao fascismo, ao sabor das circunstâncias.

Como é o fascismo?

Evidentemente que algumas características estarão sempre lá. Mas estarão também em muitos outros regimes ou movimentos de direita não fascistas.

O fascismo é corporativista, mas o corporativismo esteve em ideologias não fascistas. Ele é essencialmente mobilizador, como Karl Radek e os primeiros teóricos do Komintern o notaram, mas uma vez no poder muitos fascismos procuravam controlar os excessos de mobilização.

Foi isso que levou à eliminação de facções do movimento altamente radicalizadas na Alemanha, Portugal e Romênia. Ele foi antissemita[9], mas não em todos os países; ele era machista, mas vicejou sempre em sociedades que já o eram.

O fascismo era totalitário? Sem dúvida. O próprio Mussolini reivindicava isso.

Mas entre a pretensão totalitária e a realização havia sobrevivências do passado que o obrigaram a conviver com a Monarquia, a Igreja e as Forças Armadas do Estado.

Era nacionalista? Sim, mas na maioria dos países fascistas, que eram periféricos ou semiperiféricos, aquilo era uma retórica e não significou jamais uma defesa real da soberania nacional.

Cultivava a violência? Sim, mas herdou de Sorel e de algumas correntes anarquistas esse mesmo culto.

Defendia uma Economia dirigida? O socialismo também. E, em verdade, nos anos 1930 praticamente todos os países porque era a resposta possível à crise de 1929[10].

Mussolini usava milícias paralelamente ao Estado? Sim.

Mas isso foi mais saliente no período anterior à tomada do poder do que depois. E voltou a ser importante nas crises do regime.

O fascismo destruía as instituições democráticas? Sim, mas também convivia com elas como na Itália nos anos 1920.

Era antiliberal? Sim, mas os liberais aceitaram sua ascensão no interior do próprio Estado, como aconteceu com Mussolini, Salazar e Hitler, embora não com Franco.

Dimitrov já sabia que nem sempre o fascismo bania os partidos revolucionários, ou mesmo partidos burgueses competidores. Isso dependia “das condições históricas, sociais e econômicas”.

Mussolini conviveu nos primeiros anos com o Partido Comunista e debateu com Gramsci no parlamento.

Poderíamos prosseguir numa infindável lista. Como disse Umberto Eco:

“O termo ‘fascismo’ adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista”.

Por outro lado, não podemos recusar o conceito hoje.

O comunismo, a social democracia e o anarquismo são movimentos que ultrapassaram a Segunda Guerra Mundial e adquiriram novas características. Por que o fascismo não poderia fazer o mesmo?

Também não podemos transformá-lo numa realidade eterna. Ele só foi possível na crise do entre guerras e na época do imperialismo e do capitalismo monopolista, ainda que encontremos antecipações fascistas em autores reacionários desde a Revolução Francesa, como De Maistre.

É óbvio que países que apenas tinham pretensões a desenvolver um capitalismo monopolista de Estado foram fascistas.

E os Estados Unidos não precisaram adotar tal regime porque tinham uma posição única de liderança econômica e militar, protegidos por dois oceanos.

Mas o que explica isso é a história concreta e não uma adaptação da realidade com um conceito preestabelecido. Houve países fascistas que podiam ser mais ou menos imperialistas, mais ou menos nacionalistas. Da mesma forma o fascismo pode ser mais ou menos estatista.

Continuam imprescindíveis os debates sobre a incipiente caracterização de Stalin na XIII Assembleia Plenária da Internacional Comunista; a defesa da frente contra o fascismo por Dimitrov no VII Congresso de 1935; as advertências de Trotsky ou de Simone Weill sobre a Alemanha[11]; as excelentes lições de Togliatti[12] sobre as instituições fascistas que controlavam o lazer, o esporte e outras atividades fora do trabalho e muitos outros.

Encontraremos em todos eles elementos para compreender também a nossa época.

Uma técnica

Diante da dificuldade de encontrar uma definição precisa e consensual, alguns autores preferiram escolher outro método nos últimos vinte ou trinta anos, ainda que não deixassem de procurar uma definição abrangente.

Procuraram as fronteiras imprecisas dos regimes, os contornos dos movimentos, as fases que ele pode ou não percorrer e se “completar” como proposta, como movimento ou regime.

Paxton procurou mostrar as etapas dos fascismos[13]; o português João Bernardo encontrou os eixos interno e externo[14] em torno dos quais as diferentes experiências fascistas se organizaram; e Umberto Eco mostrou por meio de uma “semelhança de família” um fascismo fuzzy[15].

As características que o fascismo pode mobilizar são muitas, mas não infinitas. O fascismo não pode substituir o capitalismo por uma economia socialista, por exemplo, embora Mussolini fosse um filho de anarquista com passado socialista e Gregor Strasser se declarasse inimigo do capitalismo.

No Brasil

Depois da vitória eleitoral de Bolsonaro muitos jornalistas se prestaram ao papel de muito normalizar o momento. Apoios entusiasmados existiram de forma marginal nas elites intelectuais.

No entanto, jamais o saber foi imune ao fascismo. Se ele maneja o irracional, ninguém está imune. Daí a sua força.

Circunstâncias de vida, ressentimento, fracasso profissional, círculos de amizade, profissão e outras esferas da existência predispõem mais ou menos uma pessoa a aderir ou não. Todavia, não resta dúvida que um militante fascista não pretende mais agir como ser humano.

Um fascismo pode ser religioso ou ateu, mas não pode haver uma religião fascista dotada de qualquer profundidade teológica.

Por tudo isso, o debate sobre quais características este ou aquele regime fascista mobilizou vai continuar.

É verdade que Hitler era um pintor medíocre e frustrado e que vários nazistas tiveram pretensões artísticas.

Se na expressão de Eric Hobsbawm a Revolução Francesa foi a “carreira aberta ao talento” o fascismo abre a carreira aos ressentidos.

Bolsonaro não tem pretensão intelectual alguma e o “filósofo” de seu movimento não merecerá futuramente nenhuma análise salvo como um documento de barbárie.

Um gramsciano poderá tentar compreendê-lo a partir de uma rubrica dos Cadernos do Cárcere: o lorianismo.

O bolsonarismo é produto das redes sociais e não de comícios de rua.

Hitler discursava, Bolsonaro faz lives.

Hitler tinha algum conhecimento militar, Bolsonaro nenhum, apesar da profissão.

Mussolini era hábil debatedor, Bolsonaro fugiu de debates.

Salazar conhecia profundamente economia, Bolsonaro confessou nada saber.

Bolsonaro mal sabe falar, os fascistas dos anos 1930 eram oradores.

No passado, o integralismo brasileiro não pode ter um Heidegger, mas Plínio Salgado era um reconhecido jornalista e entres seus primeiros romances houve um ou outro aceito por críticos literários.

O seu movimento recrutou Vinicius de Morais, Miguel Reale, Gustavo Barroso, Helder Câmara, Abdias do Nascimento e Ernani Silva Bruno, autor da bela História e tradições da cidade de São Paulo[16].

Cada fascismo tem os intelectuais condizentes com seu solo histórico.

Diálogo?

Em excelente artigo no site A Terra é Redonda  Thelma Lessa da Fonseca cita Adorno para quem “os agitadores fascistas são tomados a sério porque se arriscam a passar por tolos”.

Eles recorrem ao baixo calão, imagens sádicas, a atos histriônicos, ao culto da violência, a discursos sem coerência lógica exatamente porque, assim, podem romper tabus de sua envergonhada e contida classe (média).

A crise de valores permite que defendam a Bíblia com palavrões e sexo, mentiras e maldade; que promovam privilégios e censura em nome da igualdade e da Democracia; e que defendam a Ordem e o Brasil em nome da Revolução e dos Estados Unidos.

O nazi Wilhelm Stapel, citado por Wilhelm Reich, avisou que, sendo o seu movimento de natureza elementar, não deveria ser abordado com argumentos.

E o próprio Hitler insistia que se deve dirigir às massas não com argumentos, provas e conhecimentos, mas com sentimentos e profissões de fé.

Para Mussolini, que tinha um preparo político superior ao de Hitler, doutrinas não passavam de expedientes táticos[17].

Assim, a propaganda podia ser contraditória e diferente conforme a camada da população a que se dirigia.

Segundo Reich, que se voltou ao conteúdo afetivo e irracional da adesão ao fascismo, haveria uma coerência na manipulação das sensibilidades dos aderentes. Por isso seria aconselhável escutar com atenção o que os líderes fascistas diziam[18].

Tratava-se de um discurso em que as palavras mantinham relação arbitrária com as supostas realidades às quais se referiam.

Por isso, não havia coerência nos significados ou na sequência daquilo que era enunciado, apenas na sua manipulação oportunista. O objetivo da manipulação é apenas perenizar a própria manipulação. A forma não importa, o estilo é rude.

Em Behemoth Franz Neumann dizia que a ideologia nacional socialista estava fundida com o terror e que toda declaração nazista carecia de consistência.

Era um oportunismo absoluto onde cada afirmação procedia da situação imediata e era abandonada quando a situação mudava[19].

Definição sempre provisória

O fascismo é uma revolução dentro da Ordem como disse João Bernardo.

Mas a ordem é fundamento a ser conservado por uma forma radical. O que significa que ele é uma técnica política e uma retórica antes de qualquer coisa. Sua forma, mesmo grosseira, é mais importante que o conteúdo.

Afinal, Bolsonaro não tem um programa econômico muito diferente do partido Democratas ou mesmo dos tucanos.

Ele prosseguiu e radicalizou medidas liberais anteriores; mas todos sabem que seu governo é outra coisa. Não é fascista, mas é ocupado por neofascistas.

Num momento em que as classes dominantes, na crise de seu modo tradicional de dominação, sacrificam sua existência política em favor da econômica, o Fascismo pode (ou não) surgir como a manipulação “racional” daquilo que há de irracional nas camadas médias, as quais traduzem seu medo da desclassificação social num transe ideológico.

Uma classe em trânsito é uma classe em transe.E isso se alastra para outros setores sociais como a Internacional Comunista já havia detectado, envolvendo mesmo franjas do proletariado.

As formas que o transe assume são muitas. Os conteúdos também.

Assim como a burguesia alemã mobilizou o fascismo para tentar derrotar os Estados Unidos e a Inglaterra e dirigir a economia mundial, a burguesia brasileira mobilizou o bolsonarismo para manter-se como exportadora de commodities periférica e subordinada; mas acima de tudo como exploradora de mais valia excessiva de uma força de trabalho sem direitos.

No caso brasileiro isso se deu assim porque a ascensão regional do país só poderia continuar com a retomada da industrialização e a competição com os Estados Unidos, o que implicaria internamente a ultrapassagem da política de conciliação de classes de Lula e o risco de a classe trabalhadora radicalizar suas conquistas.

Transformar o Brasil numa potência soberana implicaria elevar a classe trabalhadora a um nível ético e político inaceitável para a cultura dominante no Brasil e assumir conflitos na arena externa que exigiria mobilização popular.

Lula e o PT tinham um “pecado de origem” (um partido que nasceu operário e socialista antes de se moderar politicamente).

Não era uma agremiação confiável para refrear as classes trabalhadoras, embora o tentasse.

As elites preferem se aliar à ralé de milicianos do que a trabalhadores organizados especialmente quando o pleno emprego aumenta o poder de barganha destes e a intervenção do Estado parece subordinar as iniciativas privadas de investimento.

Em 1930, por exemplo, a burguesia e as Forças Armadas defenderam o desenvolvimento industrial em acordo com a oligarquia agrária.

A situação de conflito entre as potências e o autoritarismo de Vargas ofereciam a oportunidade de um jogo de soma múltipla em que todos pareciam ganhar.

O integralismo permaneceu na oposição porque seu anticomunismo não era industrialista e não oferecia uma válvula de escape para a questão social.

O caráter agrário do integralismo não significava que ele não era fascista, assim como a natureza industrial do nazismo não implicava que o fosse [20].

No Brasil a burguesia não precisou dos fascistas nos anos 1930 [21] porque Getúlio Vargas conduziu um grande acordo de classes oferecendo violência e consenso, anticomunismo e direitos trabalhistas.

Exemplos

Na Conferência conservadora brasileira o Ministro da Educação se dedicou a combater o nazismo, atribuído à filósofa Marilena Chauí.

Ele iniciou sua palestra falando da classe média oprimida pelos oligarcas na Grécia antiga (sic).

Em seguida apresentou uma inusitada estratificação das classes sociais no Brasil onde o papel fundamental seria de empresários comunistas.

De repente mudou o rumo e mostrou imagens de curva de oferta e demanda, conceitos básicos como monopólio e monopsônio e terminou na associação de empresários com o nazismo.

O mais impressionante foi a comparação dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula com doenças mortais, típica das metáforas biológicas dos nazistas, algo que se repete no programa da Aliança para o Brasil, o novo partido fascista brasileiro, que ataca uma nova chaga: a “ideologia de gênero”.

A incoerência formal não é uma exceção. No discurso proferido na cerimônia de Recebimento da Faixa Presidencial no Palácio do Planalto, em 01 de janeiro de 2018, Jair Bolsonaro disse: “o povo começou a se libertar do socialismo”.

O discurso terminou com um nonsense: “essa é a nossa bandeira, que jamais será vermelha. Só será vermelha se for preciso o nosso sangue para mantê-la verde e amarela” (sic).

Há um exemplo de uma formulação mais elaborada e alude ao supracitado programa da Aliança pelo Brasil.

Ele tem uma narrativa linear, aparentemente lógica: o povo começou a se proteger contra os socialistas ao defenderem a posse de suas armas mediante um plebiscito em 2005; em 2013 saiu às ruas, ainda sem “muita clareza” e esse foi o seu segundo despertar.

Finalmente, nas eleições de 2018 surgiu a oportunidade de se livrar do garantismo jurídico socialista, da erotização da infância, do socialismo e do aborto através do controle popular contra o estamento burocrático e o ativismo judicial.

Todas as expressões anteriores constam do documento. Como faziam os fascistas originais, os seus autores incorporaram parte da linguagem de esquerda, atribuíram coisas bizarras aos socialistas e alargaram o conjunto dos adversários para incluir juristas “garantistas”, mulheres “abortistas”, professores etc.

O controle popular é uma expressão logo esvaziada no texto. Na linha seguinte ela se redefine numa palavra estrangeira: accountability.

Há outros elementos dignos de nota tais como: a segurança jurídica para que soldados possam matar em serviço; a defesa do cristianismo; da língua portuguesa; e, ainda que de forma sub-reptícia, de uma História que ensine o valor de “grandes homens e mulheres do passado”.

Repudiando a luta de classes e a planificação o programa termina com a exaltação do liberalismo econômico e da grandeza da nação.

Será que importa o que foi dito nos parágrafos acima?

Certamente interessa como são articulados os falsos argumentos. Eles dialogaram com a consciência fragmentada dos seus aderentes.

Sua falsidade é verdadeira para eles?

Acreditavam os bolsonaristas de 2018 na “mamadeira de piroca”?

O riso que nós dedicamos a essas bobagens os torna ridículos ou, pelo contrário, reforça nossa condição de esnobes, petistas, ambientalistas, artistas, operários, funcionários públicos, empresários, parasitas etc?

Essa consciência fragmentada é um traço constitutivo da vida sob o capital. Por que só agora encontraria uma falsa unidade num proselitismo desconjuntado?

Estaria a resposta, como pensava Gramsci nos anos 1930, nas novas relações de produção que nos submetem? É dali que devemos partir?

A teologia da prosperidade, o trabalho “uberizado”, a desclassificação das profissões liberais (medicina, engenharia), a desindustrialização e o cotidiano das redes sociais mantêm relação com o triunfo dos neofascistas?

A realidade em que vicejou o bolsonarismo não é um movimento isento de contradições.

Ele sobrevive numa economia de baixo crescimento e sem dinamismo industrial.

Porém, a mais flagrante delas está em alterações que ocorreram nos fundamentos da vida social.

O bolsonarismo não aderiu à vivência da maioria das pessoas. As mulheres não voltaram recatadas ao lar e nem os jovens renunciaram à sua cultura, salvo provisoriamente pelo terror.

E é para o terror que o bolsonarismo apela no dia a dia.

Enquanto encenava a noite das facas falsas ou a conferência da solução final da “questão petista”, ele se fortalecia a cada crise que o tornava vítima de uma conspiração.

Acredito que nossa compreensão e que, portanto, a elaboração de uma estratégia deve começar com essas perguntas. Indagações que só movimentos coletivos vinculados à prática poderão responder.

Não nos iludamos: desde sua ascensão Bolsonaro não perdeu poder, ele se fortaleceu e até intentou sua noite das facas falsas.

O seu modus operandi não consiste em defender alguma pauta específica, mas em produzir crise permanente. Em conduzir a esquerda a jogar o seu jogo, a dialogar com o mito que representaria o povo e não com o próprio povo.

O fascismo é um blefe permanente. Em situações “normais” ninguém o leva a sério. Nas crises todos fingem que não o levam a sério. Se está no poder todos fingem que ele não é fascismo.

A marcha sobre Roma foi um blefe do ponto de vista militar. Uma única ordem e o Exército teria dizimado os fascistas. Mas quem se arriscaria a dá-la? Seria obedecida?

O temor coletivo nos leva a normalizar cada bravata, cada ameaça. Quando nos levantamos indignados, eles recuam. Depois retornam mais audazes.

Quando Luiz Bonaparte se via confrontado com a Revolução, segundo o relato de Marx, o que fazia? Pedia perdão de maneira pusilânime e rendia tributo ao partido da ordem.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP.

Versão modificada de artigo publicado no blog marxismo21

Notas

[1] Reale, M. ABC do Integralismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935, p. 105.

[2] O nome oficial é em inglês: Cpac – (Conservative Political Action Conference). Agradeço as leituras de Fernando Sarti, Carlos Quadros e Luiz Franco.

[3] Sontag, S. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre, LPM, 1980, p.81.

[4] Thalheimer, August. Sobre o Fascismo. Salvador: CVM, 2009, p. 35.

[5] Gramsci, A. Escritos Políticos. V. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 269.

[6] Schmitt, C. O Conceito do Político. Lisboa: Edições 70, 2018, p.54.

[7] Safranski, R. Heidegger: Um Mestre da Alemanha entre o Bem e o Mal. São Paulo: Geração Editorial, 2013, p. 299.

[8] Id. Ibid., p. 298.

[9] Aliás, o bolsonarismo se afirma pró Israel e evangélico.

[10] O fascismo latinoamericano pode ser liberal hoje porque corresponde à necessidade da burguesia periférica retomar um (ilusório?) crescimento econômico sem romper com a dependência externa. Ele não dirige um avanço das forças produtivas, mas resolve provisoriamente entraves ao crescimento via fim do salário indireto e destruição de direitos sociais. Que isso seja irracional no médio prazo, não seria uma novidade. O nazismo chegou ao limite da irracionalidade ao reprimir aliados na invasão da União Soviética (vide o relato sobre a campanha na Russia feito pelo coronel Hellmuth Gunther Dahms) e ao colocar a “revolução rácica” acima das necessidades econômicas (João Bernardo, Labirintos do Fascismo, op. cit, pp. 266 e ss). Isso se repetiu na própria administração da economia de guerra das áreas ocupadas como o historiador britânico Arnold Toynbee reportou. Nos anos 1930 havia espaço para uma industrialização relativa da América Latina, embora jamais se alcançasse a internalização da reprodução do Departamento I; sob o regime de financeirização globalizado parece mais difícil e conflituoso um projeto de autonomia nacional.

[11] Weill, S. A Condição Operária e outros Estudos sobre a Opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

[12] Togliatti, P. Lições sobre o Fascismo. São Paulo: Lech, 1978.

[13] Paxton, R. Anatomia do Fascismo. São Paulo: Paz & Terra, 2008.

[14] Bernardo, J. Labirintos do Fascismo. Porto: Afrontamento, 2003, p. 51. A originalidade e a extensão da pesquisa não eliminam inúmeros erros de avaliação feitos nessa obra.

[15] Usado atualmente em lógica para designar conjuntos “esfumados”, de contornos imprecisos. In: Eco, Umberto. O Fascismo Eterno, in: Cinco Escritos Morais, Tradução: Eliana Aguiar, Editora Record, Rio de Janeiro, 2002.

[16] Embora em seu Almanaque de Memórias ele convenientemente não se lembrasse de seu envolvimento integralista.

[17] Chabod, F. História do Fascismo Italiano. Lisboa: Arcádia, s/d.

[18] Reich, Wilhelm. Psicologia de Massa do Fascismo. Lisboa: Escorpião, 1974, pp. 35, 79, 93 e 95.

[19] Neumann, F. Behemoth. Mexico: FCE, 2005, p. 57.

[20] Como disse Fernando Sarti em reunião do GMarx – USP quando líamos o manuscrito intitulado “1937” de Caio Prado Junior (IEB-USP).

[21] Como argumentou Valerio Arcary o “neofascismo em um país periférico como o Brasil não pode ser igual ao fascismo de sociedades europeias dos anos trinta”. Para ele Bolsonaro respondeu não à ameaça de uma Revolução, mas a governos moderadamente reformistas. (https://revistaforum.com.br/colunistas/bolsonaro-e-ou-nao-um-neofascista/)

Fonte: Viomundo