São Paulo – Nos últimos dias, alguma coisa mudou no teor das falas do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), até aqui mais uma voz importante no Parlamento a manter adormecidos as mais de uma centena de pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Até um mês atrás, Lira afirmou que 100% das ações pela destituição do presidente que ele dizia já ter analisado eram “inúteis”. Na ocasião, o presidente da Câmara argumentava que não caberia à Casa, por “conveniência política de A ou de B, instabilizar a situação”. O deputado lembrava ainda que seu antecessor no comando da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), também passou dois anos sem se manifestar sob o tema. Sob Maia passaram batidos 66 pedidos protocolados na Mesa da Câmara, e hoje (27) já são 120.
Apesar de citar fatores que vão de inutilidade a instabilidade, Arthur Lira argumentava ainda que “o tempo é o da Constituição, na conveniência e na oportunidade”, conforme reportagem da Agência Câmara. Dois aspectos chamavam a atenção para sua leitura da situação. Primeiro: o fato de considerar inúteis 100% dos pedidos de impeachment de Bolsonaro que analisou não significa que tenha analisado todos. Segundo: ao evocar o tempo da “conveniência” e da “oportunidade”, deixa claro que o tempo do impeachment é essencialmente político. Trinta dias depois dessas declarações, porém, o tom do presidente da Câmara foi atualizado, possivelmente pela conveniência e oportunidade. E já nem se sabe ao certo quanto do Centrão segue com o governo.
Em entrevista esta semana à Rádio Bandeirantes, Arthur Lira voltou a ponderar que o assunto impeachment de Bolsonaro exige “responsabilidade”. Mas afirmou que os pedidos protocolados na Câmara estão sendo analisados – só que desta vez sem desqualificá-los como “inúteis”. E avisou: “Vamos nos posicionar muito em breve sobre grande parte deles”. Segundo Lira, não é o presidente da Câmara que estrutura o impeachment, mas a conjuntura política e nacional de um país. A respeito dessa conjuntura, ele afirmou que ainda não vê sob Bolsonaro perda de capacidade política do governo, “condição de desemprego absurda” e nem descontrole da inflação.
Vidas Brasileiras e o impeachment de Bolsonaro
O mais recente pedido de impeachment de Bolsonaro apresentado à Câmara dos Deputados, na segunda-feira (24), foi assinado por 15 personalidades. A maioria do mundo da cultura e da comunicação. São elas: Ailton Krenak, Cristina Serra, Fabio Porchat, Felipe Neto, Chico César, Hermes Fernandes, Julia Lemmertz, Julio Lancellotti, Ligia Bahia, Marcelo, Gleiser, Xuxa Meneghel, Raduan Nassar, Vanderson Rocha, Veronica Brasil e Walter Casagrande.
Em vídeo postado no Instagram, a atriz Julia Lemmertz afirma: “Nós fazemos parte de um movimento chamado Vidas Brasileiras, que não tem motivação político-partidária. E, como muitos, nós não aguentamos mais assistir calados a essa escalada de mortes de brasileiros por covid, que é resultado das omissões e da má gestão desse governo”. A atriz convida as pessoas a “assinarem” embaixo a iniciativa para que o pedido não seja “apenas mais um”. Até a tarde desta quinta-feira, a página do Vidas Brasileiras tinha mais de 630 mil assinaturas, quando o site informava estar em manutenção.
Também no perfil do movimento no Instagram, a jornalista e escritora Cristina Serra, explica em vídeo o pedido de impeachment de Jair Bolsonaro por crimes de responsabilidade: “Queremos salvar vidas”. E reforça o pedido de assinaturas para que esse pedido não seja “apenas seja mais um”. O reforço tem o objetivo de qualificar o pedido em meio a mais de uma centena de protocolos desprezados pela Mesa da Câmara dos Deputados.
Indícios irrecusáveis
O jurista Mauro Menezes, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor de Direito Constitucional, considera positivo o fato de o movimento Vidas Brasileiras afirmar não ter motivação político-partidária. A pluraridade social na causa pode ser um bom reforço, avalia. Tanto na sensibilização da sociedade quanto para um suporte político de apontar que o movimento pelo impeachment de Bolsonaro não se trata de conveniência partidária. “Pesa sobre o presidente da Câmara dos Deputados o urgente encargo de admitir a pertinência das alegações fundamentadas da prática de crimes de responsabilidade pelo presidente da República, decorrentes de afrontas constantes à Constituição Federal, à integridade das instituições e às mais básicas incumbências de governo. Os indícios são irrecusáveis”, afirma o advogado.
Menezes, aliás, é signatário, ao lado da procuradora aposentada Deborah Duprat, de um pedido de impeachment de Bolsonaro apresentado em julho do ano passado, o de número 52. Ele lamenta que a mudança de comando na Câmara ainda não tenha representado alteração no clima político pelo afastamento do presidente da República. “Espera-se que o deputado Arthur Lira dimensione o alcance histórico de sua decisão e permita a deflagração do processo de impeachment contra Jair Bolsonaro. Será um gesto de sensatez que o engrandecerá. E abrirá um horizonte concreto para que se interrompa o desgoverno e a corrosão das instituições da República”, afirma o jurista. Integrante do Grupo Prerrogativas, Mauro Menezes também ajudou a redigir um outro pedido de impeachment. Apresentado em 2020, foi assinado por movimentos sociais, juristas, intelectuais, artistas, parlamentares e presidentes de partidos de esquerda.
Primeiro a boiada?
O presidente da Câmara, por sua vez, vai tentando cumprir sua missão, que pode não ser exatamente blindar Bolsonaro, mas evitar que um ambiente de instabilidade perturbe a passagem da “boiada”. Um dos primeiros itens postos em votação por Lira, antes mesmo de qualquer possibilidade de prorrogação do auxílio emergencial, foi a “independência” do Banco Central, ao sabor do mercado financeiro.
Somente nos últimos dias, por exemplo, o Congresso aprovou projeto de lei que praticamente inviabiliza a proteção ambiental. Além disso, encaminhou ao Senado, depois de aprovação na Câmara, a medida provisória que abre caminho para a privatização da Eletrobras. E nesta semana, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara deu carta branca ao andamento da proposta de emenda à Constituição da chamada “reforma administrativa”. A PEC 32 até o momento é tida como demolidora para a grande maioria dos trabalhadores do serviço público enquanto preserva interesses do alto escalão. Seguirá agora para uma Comissão Especial antes de ser apreciada em plenário nas duas Casas.
É possível que depois da passagem da “boiada” o presidente da Câmara venha a enxergar outro ambiente de “conveniência e oportunidade” para o impeachment de Bolsonaro, à luz da Constituição. A conferir ainda o que restará do cambaleante Estado brasileiro e da soberania nacional. E quantas vidas mais terão sido perdidas para a covid-19 diante da política que deliberadamente permitiu, até o momento, a contaminação de 16,3 milhões de brasileiros. E a morte de 457 mil.
Os mais de cem movimentos sociais reunidos na Frente Brasil Popular e Frente Povo sem Medo, ao promoverem neste sábado o #29M, uma retomada das manifestações de rua pelo “Fora Bolsonaro”, preferem não esperar mais para ver. Não faltarão cuidados com a covid, garantem. Nem coragem.
Fonte: RBA