Durante nove meses, prorrogáveis por mais três, 78 homens e 77 mulheres — a maioria, de esquerda — serão desafiados a escrever um texto inclusivo, ansiosamente esperado
O novo capítulo da história democrática do Chile começa a ser escrito a partir de hoje, quando 155 constituintes eleitos pelo povo iniciarão a redação da primeira Carta Magna desde a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). O processo inédito teve suas bases em 2019, com manifestações muitas vezes combatidas com violência pela polícia, e culminou no plebiscito constitucional de outubro do ano passado, quando 75% dos chilenos optaram por sepultar a atual Constituição, apontada por seus críticos como a base de um Estado ausente, subsidiário do setor privado no contexto de uma economia ultraliberal e promotor da desigualdade.
Durante nove meses, prorrogáveis por mais três, 78 homens e 77 mulheres — a maioria, de esquerda — serão desafiados a escrever um texto inclusivo, ansiosamente esperado pelos cidadãos. Pela primeira vez na história do país, 17 constituintes são povos originários. A composição da chamada Convenção Constitucional é heterogênea, com desconhecidos de diferentes origens demográficas, étnicas e profissionais, com um forte sentido ecocentrista.
Segundo Marcela Ríos, representante assistente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) no Chile, no processo, parte muito importante dos novos atores se apresenta como diferentes das elites tradicionais. “Houve há muito tempo uma ruptura profunda entre a sociedade e as instituições, baixa confiança nas instituições, questionamentos sobre o papel dos partidos políticos. É desse lugar que hoje nasce o processo de mudança”, afirma, apontando diferenças substanciais entre os processos constituintes celebrados na Venezuela em 1999, na Bolívia em 2006 e no Equador em 2007. O analista político e acadêmico da Universidade Diego Portales Claudio Fuentes destaca o caráter amplamente democrático da eleição dos constituintes.
Dos milhares de manifestantes que tomaram as ruas do Chile após a convulsão social — com episódios de violência extrema — em 18 de outubro de 2019, cerca de 20 serão empossados no pátio da antiga sede do Congresso em Santiago, um local escolhido por razões sanitárias. Depois, as sessões serão celebradas tanto nos salões do antigo Congresso quanto no Palácio Pereira, no centro de Santiago.
Ontem, em entrevista ao site do jornal chileno La Tercera, o secretário-geral da Presidência, ministro Juan José Ossa, assegurou que o país está pronto para o início da Convenção. “Queremos transmitir ao país que estamos sempre disponíveis para melhorar o que for necessário, e que os membros da convenção podem se sentir seguros de que o governo respeita seus graus de autonomia. O Executivo não tem a intenção nem o poder de influenciar os regulamentos, nem em outros assuntos pertinentes à Convenção”, assegurou.
Extremos
Trata-se de uma Convenção Constituinte que “se parece ao Chile real”, afirmam analistas, com integrantes que são ativistas ambientais, líderes comunitários, advogados, professores, jornalistas, junto de representantes de partidos políticos tradicionais em minoria e sem que nenhuma força política conte com o terço necessário para o veto, segundo um regulamento que exige a aprovação das decisões por dois terços dos participantes. “É integrada por pessoas que trabalharam muito por suas comunidades locais e agora chegam a um espaço de discussão mais aberta”, afirma Cristina Dorador, pesquisadora da Universidade de Antofagasta, constituinte eleita, em maio deste ano, pelo Movimento Independente do Norte pela Região de Antofagasta.
Nos extremos ideológicos, destacam-se a direitista Marcela Cubillos, ex-ministra do gabinete de Sebastián Piñera, a segunda mais votada, apesar de sua bancada política ter sido uma das grandes derrotadas nas eleições de dois meses atrás. Cubillos, que fez campanha pelo “Repúdio” ao plebiscito por uma nova Constituição, disse que assume para defender o que foi alcançado em três décadas de democracia. “Pode parecer que no Chile só existe um diagnóstico, quando a direita não tem sido capaz nem mesmo de defender que esses 30 anos foram os melhores da história do Chile, e aceitou em silêncio o discurso da esquerda que quer nos fazer pensar que foram os piores da histórica nacional”, disse, em entrevista ao La Tercera.
Fonte: Correio Braziliense